O que mudou em uma década de união homoafetiva?

Dez anos do reconhecimento da união estável gay: um avanço a remos num mar de retrocessos/Pixabay
Dez anos do reconhecimento da união estável gay: um avanço a remos num mar de retrocessos/Pixabay
Depois da decisão do STF, casais do mesmo sexo passaram a ter os mesmos direitos de formação de família que casais hetero.
Fecha de publicación: 06/05/2021

Um dia antes de se completar 10 anos do reconhecimento, por parte do Supremo Tribunal Federal, de que a união de dois homens ou duas mulheres também representa uma entidade familiar, todos os jornais brasileiros anunciaram a triste morte do humorista Paulo Gustavo, vítima da Covid-19, num momento de grande comoção nacional.

 

Antes o governo do nosso país efetivamente se preocupasse com a vida dos seus cidadãos e que tal tragédia não tivesse acontecido com uma figura tão jovem e querida, mas, para o que nos interessa aqui, fato é que esse evento representou um grande marco na história da luta dos direitos LGBTQI+: não houve veículo de comunicação que não tivesse mencionado que Paulo havia deixado marido e filhos, anúncio esse que jamais poderia ser feito pouco mais de uma década atrás.


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É que, apesar de a OMS, já em 1990, ter finalmente declarado o óbvio, isto é, que a homossexualidade não é uma doença, o direito brasileiro permaneceu, por mais de duas décadas, tratando os casais homossexuais como se aberração fossem, e, por isso, não merecedores da tutela do Estado.

 

Essa lamentável postura do Estado levou à ocorrência de situações estapafúrdias, tal como o impedimento do recebimento de pensão por morte de um dos companheiros, pelo outro consorte, ainda que tenham mantido relacionamento de décadas, ou a vedação ao recebimento de herança por parte daquele companheiro que tinha contribuído, em igualdade de esforços, na construção do patrimônio do casal (que acabava sendo destinado justamente àquela família que, por anos a fio, rejeitou o falecido em razão da sua sexualidade).

 

Também não foram poucos os casos de companheiros que foram impedidos de ver o seu consorte no leito de morte, já que não detinham o reconhecimento jurídico de sua relação, logo, não podiam se opor às exigências da família do convalescente. Ouso dizer que até os animais eram tratados com mais dignidade.

 

Tais situações, por mais absurdas que fossem, jamais foram capazes de sensibilizar os nossos legisladores. Ora, se até hoje parlamentares tratam os LGBTQI+ como se representassem má influência (tal como aduziu a deputada estadual Marta Costa, autora do Projeto de Lei de São Paulo nº 504/2020, que buscava proibir a publicidade de material que contenha alusão a “preferências sexuais” (sic) e movimentos sobre diversidade sexual relacionados a crianças), décadas atrás a situação era ainda muito pior: sequer havia um único representante abertamente LGBTQI+ entre os 594 parlamentares federais, e a bancada do boi, da bala e da bíblia não perdia uma única oportunidade para rebaixar e insultar gays, lésbicas, transexuais etc.

 

Foi necessário que o Supremo Tribunal Federal, após a devida provocação (ADI 4.277 e ADPF 132), reconhecesse a letargia do Legislativo e garantisse aos casais homossexuais o mínimo possível de dignidade, através do reconhecimento da sua união estável como entidade familiar, tal como aquela mantida por companheiros heterossexuais, até que o Congresso Nacional elaborasse uma lei sobre o tema - o que não aconteceu até hoje, mais de uma década depois.

 

Após pouco tempo, como a própria Lei Civil já estabelecia que os companheiros podiam pedir a conversão da união estável em casamento (art. 1.726, do Código Civil), o casamento gay passou a ser uma realidade, após a edição da Resolução 175, do Conselho Nacional de Justiça, que passou a proibir que as autoridades competentes se recusassem a habilitar, celebrar casamento civil ou de converter união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo – o que aconteceu com uma frequência assustadora na época, mesmo após a mencionada decisão do STF.

 

Sendo gay, lamento que os meus direitos civis estejam lastreados em uma decisão judicial e uma frágil resolução de um órgão administrativo, pois isso demonstra que a nossa sociedade, refletida em nossos legisladores, ainda é arraigada de preconceitos e crenças que violam a minha existência e dignidade, mas não posso deixar de reconhecer que esses passos foram extremamente importantes, pois eles, além de constituírem um efeito simbólico positivo, reconhecem que os casais homossexuais têm os mesmos direitos que os heterossexuais, concretizando, assim (ao menos formalmente!), a igualdade propagada pela Constituição da República.

 

No mais, o reconhecimento das uniões estáveis gays, por parte do STF, além de impedir a ocorrência das escandalosas situações acima citadas, que violavam a dignidade de cerca de 10% da população brasileira, também foi a fagulha que deu causa a diversos outros avanços nos direitos da população LGBTQI+: em 2015, casais homossexuais passaram a poder adotar crianças e adolescentes; em 2018, transexuais ganharam o direito de alterar o registro civil sem a realização de cirurgia de redesignação sexual; em 2020, não só os homens gays e transexuais passaram a poder doar sangue, mas se reconheceu a inconstitucionalidade de leis municipais que proibiam a abordagem de questões de gênero e LGBTQI+ nos estabelecimentos de ensino.

 

Mas talvez a maior “vitória” dessa minoria tenha sido o reconhecimento, por parte do STF, de que atos LGBTIfóbicos são uma forma de racismo, logo, puníveis como tal. Se há 10 anos homens e mulheres gays sequer podiam constituir uma família, hoje, quem os ofende responde criminalmente por tal ato. Parece que, finalmente, somos tratados como seres humanos e não mais como animais. Não há como negar que isso é um avanço, por mais que, infelizmente, não tenha sido alcançado pelo democrático meio da legislação.


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Por fim, sobre Paulo Gustavo, é uma verdadeira lástima que não mais possamos continuar rindo das suas piadas, mas que bom que, antes de morrer, ele teve a oportunidade de realizar o seu sonho de formar uma família. É o mínimo.

 

*Felipe Caon é sócio do Serur Advogados.

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