Uma nova forma de se relacionar com o sistema financeiro está no horizonte das operações brasileiras. É o chamado Open banking, ou o banco aberto, numa tradução livre.
A mudança democratiza o sistema financeiro, porque, ao contrário do que acontece hoje, quem será o dono dos dados é o usuário. Com isso, os consumidores poderão disponibilizar suas informações para os produtos e serviços que julguem mais convenientes.
Ainda será preciso desenvolver sistemas integrados e comuns para permitir o controle e a transferência de informações de dados, como histórico, contas, empréstimos e outras questões pessoais.
A previsão é de que o serviço entre em operação a partir do segundo semestre de 2020. A equipe da Lex Latin conversou com Raquel Lamboglia Guimarães e Nicole Katarivas, advogadas do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques.
Como vocês veem a proposta colocada em consulta pública pelo Banco Central sobre Open Banking?
A proposta do BC de implantação do Open banking no Brasil está em linha com o atual cenário econômico mundial no que tange ao avanço da tecnologia e desenvolvimento de serviços financeiros com base na inovação. O conceito central gira em torno da ideia, agora já estabelecida pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), de que o titular é o proprietário dos seus dados e que é do titular o poder de decisão sobre a permissão do tratamento e compartilhamento de seus dados.
Neste contexto, a proposta do Banco Central prevê a necessidade de consentimento prévio do titular para o compartilhamento de seus dados financeiros, inclusive dispondo, em consonância com o previsto na LGPD, que o consentimento deve ser outorgado para finalidade determinada.
O compartilhamento de dados a ser promovido pelo Open banking possui o potencial de tornar o setor financeiro brasileiro, que hoje está concentrado em poucas e grandes instituições financeiras, mais competitivo através do ingresso de outros agentes e de promover a oferta de serviços diferenciados, viabilizando maior concorrência e permitindo o acesso ao sistema bancário por maior número de consumidores. No entanto, há alguns desafios centrais importantes a serem considerados.
O setor financeiro no Brasil é marcado por grande concentração e por ser restritamente regulado, o que ergue uma barreira de entrada de novos prestadores.
Se por um lado a restrição da regulamentação que sujeita as instituições financeiras promove a concentração do setor em poucos agentes, por outro lado, há uma série de normas específicas que garantem maior segurança nas transações, no sigilo da informação e na proteção dos usuários e seus dados pessoais.
As instituições financeiras estão sujeitas, por exemplo, a regras específicas sobre segurança cibernética, participação de capital estrangeiro, regras de governança corporativa e prevenção a fraudes, entre outras, sendo certo que, na medida em que o sistema Open banking permitirá o ingresso de novos agentes ,não caracterizados como instituições financeiras no ecossistema de oferta de produtos e serviços financeiros, será importante resguardar e garantir que certas normas devam ser implementadas por todos os agentes envolvidos, de modo que o sistema financeiro se comporte de forma mais aberta e com menores restrições ao mesmo tempo que os princípios de segurança dos dados e proteção dos consumidores sejam efetivamente garantidos.
Ocorre que a proposta disponibilizada em consulta pública pelo Banco Central prevê, além da regulação estatal, o modelo de auto regulação do setor por meio da celebração de convenção entre as instituições participantes. Sendo assim, as próprias instituições deverão estabelecer a estrutura de governança do sistema e os padrões tecnológicos e procedimentos operacionais a serem adotados.
Apesar da outorga da liberdade às instituições participantes em definir as diretrizes gerais do sistema, o conteúdo da convenção deverá ser submetido à aprovação do Banco Central. Este aspecto nos parece de extrema importância para garantir o acesso de todas as instituições participantes na implantação do modelo do Open banking, evitando barreiras à entrada de prestadores que sejam desnecessárias.
Outro grande desafio será garantir um nível satisfatório de proteção aos consumidores sem que a necessidade de implementação de sistemas e controles gere custos extremamente excessivos que tornem a possibilidade de ingresso de novos agentes neste setor do mercado uma possibilidade inerte.
Que aspectos da prática de direito bancário devem se modificar para trabalhar com um cliente em um case de sandbox regulatório? Quais os principais desafios?
O sandbox regulatório permitirá que as instituições já autorizadas e as não autorizadas a funcionar pelo BC desenvolvam projetos inovadores em um ambiente regulatório controlado e mais simplificado.
A ideia de criação deste ambiente experimental, que conceda às empresas inovadoras licenças provisórias para testar suas tecnologias e as submeta a normas mais simplificadas e flexíveis, tem grande potencial para gerar um “ganha-ganha”.
Enquanto criam espaço para o desenvolvimento de novas soluções pelas empresas, permitem que as autoridades reguladoras aprendam e ganhem experiência sobre tais inovações, podendo analisá-las durante período definido, para criar uma regulamentação própria e minimizar eventuais impactos e riscos aos consumidores.
Esta regulamentação é capaz de reduzir o tempo e o custo para desenvolver negócios e ideias inovadoras ao setor. Mas sua implantação virá acompanhada de diversos desafios, que ainda não parecem ter respostas. Por outro lado, sempre que se trata de projetos inovadores, é natural que não haja soluções imediatas e que a implementação deva nortear as melhorias.
Em resumo, trata-se de tema complexo, que acompanha uma tendência mundial de regular inovações e tecnologias ainda não conhecidas, para introduzir modelos de negócios ainda não consolidados e que não se sabe como evoluirão. É preciso que o BC reconheça que a regulação a ser implantada poderá (e deverá) sofrer ajustes e que esteja atento à evolução dos projetos, aos pontos positivos e a eventuais problemas, e que estes resultados retroalimentem a regulação, para corrigir seus rumos.
A regulação proposta deverá enfrentar diversos desafios, relacionados à viabilização da participação por fintechs e startups e à efetiva promoção da competitividade. Com a limitação ao número de participantes, foi necessário estabelecer critérios objetivos de classificação, dentre os quais estão previstas a capacidade técnico-operacional e a estrutura de governança da entidade interessada.
Se, por um lado, é bom que se exija certo grau de maturidade de instituições que irão lidar com soluções financeiras, inserir estes critérios de capacidade técnico-operacional e governança poderá limitar as selecionadas a braços de instituições financeiras já consolidadas, reduzindo as chances de entrantes conseguirem testar seus projetos. Este é um conflito que deverá ser considerado ao longo da implantação dos projetos.
Outro aspecto desafiador será o desenvolvimento e, principalmente, a aplicação dos planos de descontinuidade, nas hipóteses em que não haja posterior regulação do projeto proposto. Ainda que as soluções possam ser transferidas a outras instituições, é preciso garantir a segurança e os direitos dos consumidores.
E, ainda que o projeto se consolide, a regulação deverá ser inserida de modo gradual, pois uma transição abrupta de um regime flexível para um rigoroso sistema de regulação, nos moldes geralmente aplicados às soluções financeiras, também tem potencial para minar a evolução dos projetos.
E a consulta sobre duplicata escritural?
Em relação à duplicata escritural, a iniciativa de regulamentação traz um sentimento contraditório. Enquanto parece seguir a tendência de modernização dos instrumentos de pagamento e de concessão de garantias, ressuscitando um título de crédito praticamente em desuso, a normativa vai na contramão da evolução ao manter obrigações semelhantes às da normativa antiga, como a necessidade de protesto, o que mantém as barreiras à utilização como instrumento de garantia.
Ainda é cedo para concluir sobre o sucesso da normativa. Será necessário esperar algum tempo após sua aprovação, para que se avalie se o resultado pretendido de resgatar a utilização das duplicatas irá realmente ocorrer.
Que impactos podemos ver no mercado a partir da regulamentação da proposta de Open banking? O que é preciso alterar na proposta do BC e por quê?
Se bem executada, a proposta tem potencial para incentivar o ingresso de novos agentes, o que pode gerar impactos positivos no crescimento da oferta de novos produtos e serviços aos consumidores e desenvolvimento da tecnologia no setor financeiro. Por sua vez, a disponibilização de novos serviços pode, consequentemente, estimular uma concorrência saudável no setor.
Este movimento tende a resultar na amplitude do acesso dos serviços bancários à população hoje desbancarizada, assim como a ofertar ao consumidor produtos e serviços com maior transparência e facilidade de acesso.
Em relação ao segundo questionamento, acreditamos que diversos aspectos ainda serão discutidos e abordados com maior profundidade. Por ora, gostaríamos apenas de ressaltar a importância de que a futura regulamentação do sistema Open banking leve em consideração os aspectos práticos para garantia dos direitos dos titulares dos dados estabelecidos na LGPD como a retificação, revogação do consentimento, cuidados com a transferência internacional de dados, exclusão dos dados por todos os agentes que terão acesso a esses dados e principalmente a portabilidade.
Além disso, a responsabilidade entre os agentes envolvidos é um assunto que ao nosso ver deve ser amplamente discutido na medida em que, diferentemente do previsto na LGPD, não haverá na relação entre as instituições participantes necessariamente a figura do controlador e operador dos dados, mas sim o compartilhamento de dados entre os controladores.
As propostas fazem parte da agenda BC# de promoção da concorrência no mercado financeiro. Como vê a implementação da agenda neste ano, seus principais aspectos e o que esperar para 2020?
A agenda é bastante recente, mas já se identificam iniciativas positivas, como a criação do Laboratório de Inovações Financeiras Tecnológicas (LIFT), que já tem atraído projetos diversos. Levar a proposta de regulamentação à consulta pública ajudará a angariar contribuições daqueles que já têm expertise nos setores de soluções financeiras e dos interessados, inclusive, que já estejam participando dos projetos. Espera-se, para 2020, que as contribuições recebidas sejam analisadas cuidadosamente e refletidas nas minutas de resoluções propostas.
Ainda é um pouco cedo para concluir sobre os impactos imediatos à competitividade no setor, mas certamente, pode-se esperar, no médio prazo, que novas soluções financeiras sejam testadas e implantadas e que a competitividade possa aumentar. Por outro lado, não se pode descuidar dos aspectos referentes a direitos do consumidor e eventuais conflitos com regulações setoriais específicas. Portanto, trata-se de importante período de maturação da regulação, ainda que ela deva se manter flexível para receber melhorias no futuro.
Ao mesmo tempo, temos uma proposta da mesma autoridade tabelando a cobrança de juros em um produto oferecido pelo mercado financeiro. Como esperar concorrência quando o governo define o preço do produto?
A proposta de tabelar os juros do cheque especial surgiu com um viés paternalista, que busca proteger a população contra os juros abusivos geralmente cobrados no produto. A princípio, não parece que os efeitos serão eficazes, uma vez que nada se falou sobre as tarifas de operação, de modo que as instituições terão margem para cobrar maiores valores. Assim, o resultado ao consumidor poderia ser o mesmo.
Não nos parece que a medida terá impactos negativos sobre a concorrência entre instituições, já que a competitividade pode ser mantida na cobrança das tarifas. Ainda, pode-se gerar uma maior competitividade entre diferentes produtos de crédito. As instituições financeiras terão de reinventar novos produtos, especialmente, instrumentos de crédito.
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