Os projetos que querem criminalizar as fake news no país

Para especialistas, a pressão política pela aprovação do texto pode minar esforços para a eficácia da lei/Pedro França/Agência Senado
Para especialistas, a pressão política pela aprovação do texto pode minar esforços para a eficácia da lei/Pedro França/Agência Senado
Para especialistas, abordagens de restrição às liberdades de expressão já se mostraram falhas em outros países e atendem agenda política.
Fecha de publicación: 21/06/2020
Etiquetas: Brasil

Ainda com a pauta afetada pela pandemia, o Senado Federal tenta se organizar para analisar outra questão relevante para o combate ao coronavírus: a disseminação de desinformação e notícias falsas – as chamadas fake news. Um Projeto de Lei (PL) foi apresentado e já gera debate na casa. 

O PL 2.630/2020, apresentado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE) e que possui relatoria do senador Ângelo Coronel (PSD/BA) é a mais avançada das propostas. Mas a ideia de promover o que o texto aponta como "liberdade, responsabilidade e transparência na internet" esbarra em críticas pesadas de pesquisadores sobre o tema e especialistas em direito digital, que entendem que a proposta atende a uma agenda política e busca a solução pouco eficaz ao problema.

Problema que, hoje, é onipresente no Brasil: em um país com 228 milhões de linhas de celular ativas, segundo a Anatel (mais de uma para cada um dos 210 milhões de brasileiros), a desinformação encontra terreno fértil em redes sociais e aplicativos de mensagem, como o Whatsapp – tão onipresente que chega a representar a própria internet para muitos de seus usuários. 

Informações falsas sobre os mais variados temas se tornaram tão comuns que órgãos de imprensa e mesmo de governo passaram a ter profissionais dedicados a averiguar e combater estes conteúdos. O Supremo Tribunal Federal (STF) avalia ameaças causadas a seus integrantes por meio de redes sociais, e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgará se a campanha de Jair Bolsonaro impulsionou notícias falsas para prejudicar concorrentes na eleição de 2018.

O Projeto de Lei busca definir a desinformação como "conteúdo, em parte ou no todo, inequivocamente falso ou enganoso, passível de verificação, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado, com potencial de causar danos individuais ou coletivos, ressalvado o ânimo humorístico ou de paródia". O texto inicial, porém, deixa a atividade de verificação dos conteúdos falsos com as próprias empresas responsáveis pelas redes sociais. A minuta do texto ainda considera a lei válida apenas a aplicações com mais de dois milhões de usuários registrados, sem mencionar se o número conta apenas como consumidores brasileiros do produto.

Em uma transmissão virtual, realizada no dia 15 deste mês pelo Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo Federal e do Tribunal de Contas da União (Sindilegis), o senador Ângelo Coronel apontou que, apesar de o crime de espalhar fake news seja muito próximo aos já tipificados "crimes contra a honra", uma definição específica para a internet é necessária. 

"O crime contra a honra na internet tem uma pena que, se não me falha a memória, vai até a seis meses", afirmou o senador – o Código Penal prevê pena de até dois anos, em caso de calúnia. "Mas imagine a potencialidade que é possível em uma rede social. Não podemos ter a mesma tipificação de um crime de desonra na internet como a desonra comum, em um ambiente mais fechado". Segundo o parlamentar, o seu relatório sobre o PL irá contemplar esta mudança, assim como regras para o tratamento de perfis falsos em redes sociais.

A proposta legal analisada pelo Congresso foi confrontada, na transmissão, por estudiosos do tema. "Observando muito próximo 60 países, posso atestar que absolutamente nenhum país do mundo conseguiu reduzir o número de notícias falsas, nem mesmo os que foram pelo caminho da lei", apontou Cristina Tardáguila, que é diretora-associada no International Fact Checking Network (IFCN) e fundadora da Agência Lupa, pioneira na atividade de checagem de fatos no Brasil.

Países que restringiram a liberdade de expressão para conter as fake news, apontou a pesquisadora, não tiveram sucesso na empreitada. "Na Indonésia, mães que se comunicam via Whatsapp acabaram sendo presas, por terem trocado desinformação na rede por conta de um possível terremoto. Para o governo e a Justiça indonésia, aquilo foi considerado fake news e as mães foram presas", exemplificou a pesquisadora. 

Outros exemplos na Ásia mostram a falha da solução legal, segundo Cristina: "a Tailândia instituiu um centro de monitoramento das suas redes sociais, como um gabinete de guerra, emitindo mensalmente relatórios sobre as checagens que o governo tailandês executa – e, ao contrário do que se esperava, ao invés de o número de desinformações cair, o volume apenas cresce e há o senso de que este serviço protege o governo altamente militarizado de lá. E na Malásia, o primeiro homem a ser preso por fake news no planeta foi detido por dizer, em um vídeo do YouTube, que a polícia demorou quarenta minutos a chegar a determinada ocorrência – como a polícia provou, na justiça, que havia demorado menos de dez minutos." 

Para a pesquisadora, o Legislativo deve adotar medidas como as tomadas pela Finlândia, que aposta em educação midiática desde o ensino básico como prevenção a surtos de desinformação.

Ao responder um questionamento de Cristina, o senador reconheceu que não havia ouvido jornalistas que são responsáveis por investigar fake news e reconheceu a importância de medidas educativas para combater a desinformação. "Absorvemos a Internet sem termos uma educação para tratar e mexer com ela", afirmou Coronel. "Agora estamos tentando algo que, mesmo que não seja definitivo, mas paliativo, para tentar ao menos proteger a sociedade."

Agenda política

Para o especialista em direito digital Fernando Peres, a pressão política pela aprovação do texto pode minar esforços para a eficácia da lei. "Muito me preocupa quando uma lei é desenvolvida e aprovada porque interferências externas exigem de uma maneira ou outra", disse o advogado, que analisou a questão a pedido de LexLatin.

Peres argumenta que, mesmo que não haja aprovação da lei, não quer dizer que não haja responsabilidade pelo que se publica na Internet. "Não podemos, hoje, tipificar o termo 'fake news' como crime. É necessário verificar quais ações e atos específicos estão relacionadas à fake news, para que haja sua tipificação correta. Não quer dizer que não haja eventual responsabilidade", comentou.

O advogado também considera que as medidas apresentadas pelo Legislativo são pensadas para atender o funcionamento de redes sociais específicas – uma possível brecha para que plataformas menores ou que possam ser criadas no futuro não se enquadrem na atual regulamentação.

"Se faço esta distinção entre redes sociais pelo número de usuários, por exemplo, corro um risco muito grande de eventuais criminosos publicarem desinformação ou notícias falsas, originalmente, em plataformas menores, onde a lei não se aplica", afirmou Peres. "Mesmo que haja uma remoção deste conteúdo em redes sociais a quem a lei se aplica, o conteúdo original continuará disponível."

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