Arbitragem e Inteligência Artificial: onde estamos e para onde vamos

O que a comunidade e os legisladores dirão sobre árbitros feitos de cabos e metal?/Foto: Canva
O que a comunidade e os legisladores dirão sobre árbitros feitos de cabos e metal?/Foto: Canva
Operadores do direito precisam estar atentos e garantir que o uso dessas ferramentas respeite os princípios da ampla defesa, contraditório e do livre convencimento do árbitro.
Fecha de publicación: 29/09/2023

Nos últimos anos, notamos o uso cada vez mais frequente de funcionalidades digitais e meios eletrônicos em procedimentos arbitrais. Audiências, inclusive de instrução, são realizadas por videoconferência. A apresentação de manifestações e documentos em vias físicas foi praticamente eliminada, tendo dado lugar à gestão de documentos em “nuvens”. Novos sistemas e aplicativos surgem quase diariamente com a promessa de garantir que disputas sejam resolvidas com mais eficiência, economizando tempo e recursos dos envolvidos. 

 

A flexibilidade inerente ao procedimento arbitral, governada pela máxima da autonomia da vontade das partes, possibilita que sistemas de inteligência artificial produzam o próximo grande salto tecnológico na prática arbitral. Essas ferramentas não são, ao menos a princípio, incompatíveis com o arcabouço legal brasileiro. Tanto é assim que o Conselho da Justiça Federal (CJF), durante a II Jornada para Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios (2021), referendou ser “admissível na arbitragem valer-se de ferramentas tecnológicas de inteligência artificial para subsidiar as partes e o árbitro no curso do procedimento” (Enunciado 106). 

 

Algumas aplicações dessas novas tecnologias já estão disponíveis. Estimuladas pela comunidade jurídica e pelo mercado de inovações, as partes têm recorrido a diversos softwares para auxiliá-las no processo de escolha de árbitros, momento crucial para o bom desenvolvimento do procedimento. Iniciativas como o Arbitrator Intelligence e Global Arbitration Review Research Tool disponibilizam dados coletados a partir de feedbacks de advogados sobre o envolvimento de árbitros em audiências, tempo médio para prolação de sentenças, além de preferências e práticas processuais adotadas por cada profissional. 


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A partir dessa base de dados, as partes podem mitigar possíveis conflitos e diversificar as opções para indicação de árbitros, inclusive promovendo maior diversidade racial e de gênero na área. A tendência é que a nomeação de árbitros ocorra de forma mais racional e menos subjetiva. 

 

Mas o principal uso da inteligência artificial em arbitragens continua sendo o processamento de dados em disputas complexas, auxiliando advogados a determinar, dentre terabytes de documentos digitais, o que é relevante para cada caso. A dúvida que fica é se tribunais arbitrais também poderiam se valer de softwares similares para prolatar decisões, para dar cumprimento a uma ordem de exibição de documentos, por exemplo. As cortes britânicas já admitiram essa possibilidade, caminho que poderá ser seguido por tribunais arbitrais no futuro, ainda mais diante do desenvolvimento crescente do e-discovery

 

Ao que tudo indica, contudo, o futuro reserva questões muito mais difíceis. Para além do uso da inteligência artificial como instrumento à disposição de árbitros de carne e osso, o que a comunidade e os legisladores dirão sobre árbitros feitos de cabos e metal? O tema é bastante polêmico, principalmente porque encontra uma barreira inicial em diversos ordenamentos jurídicos. O direito brasileiro, por exemplo, exige que o árbitro seja “qualquer pessoa capaz que tenha a confiança das partes” (art. 13, Lei nº 9.307/96), características, por óbvio, ausentes em um robô.


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Contudo, dispositivos como esse datam da época em que “robôs” e “inteligência artificial” faziam parte do vocabulário de livros distópicos, como “Eu, Robô”, romance de Isaac Asimov que muitos anos depois inspirou a produção cinematográfica de mesmo nome. A interpretação literal eventualmente abrirá espaço para a vontade das partes de resolver conflitos específicos por meio de programas de inteligência artificial, sobretudo em litígios que demandem solução rápida.

 

Enfim, todas essas constatações confirmam o prenúncio de Isaac Asimov: “a humanidade não está mais sozinha”. Como a inteligência artificial revela novas fronteiras e alternativas na área jurídica, os operadores do direito precisam estar atentos e garantir que o uso dessas ferramentas respeite os princípios da ampla defesa, contraditório e do livre convencimento do árbitro, principalmente na área de resolução de disputas.

 

*Matheus Barcelos e Liz Teixeira Martins, advogados da área de Solução de Conflitos do BMA Advogados.

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