Direito autoral na era da inteligência artificial: uma análise comparativa

É forçoso reconhecer que tais discussões e seus desdobramentos legais podem ter enorme impacto em diversas indústrias para além da de obras visuais / Google DeepMind - Pexels
É forçoso reconhecer que tais discussões e seus desdobramentos legais podem ter enorme impacto em diversas indústrias para além da de obras visuais / Google DeepMind - Pexels
Os direitos autorais, ainda que prevejam uma série de direitos patrimoniais, são fortemente ligados a aspectos morais da criação, uma vez que conceitualmente derivados da visão revolucionária francesa do espírito humano como fonte criativa, a qual concebe a base da teoria personalíssima da propriedade intelectual.
Fecha de publicación: 28/09/2023

No final de agosto, uma corte federal estadunidense decidiu, pela primeira vez, que obras produzidas por inteligência artificial generativa não são protegidas por direitos autorais. Analisando o caso Thaler v. Perlmutter, a juíza Beryl A. Howell, da Corte Distrital do Distrito de Columbia, acatou os argumentos do US Copyright Office, reconhecendo que as proteções de copyright são apenas aplicáveis a obras de criação humana.

O caso, que se iniciou em 2018 quando Stephen Thaler buscou registrar a obra A Recent Entrance to Paradise gerada por seu sistema Creative Machine perante o USCO, força uma análise fundamental das implicações jurídicas dos produtos de softwares generativos. A decisão seguiu a linha de quase um século de jurisprudência sobre o tema, incluindo caso emblemático no qual a justiça norte-americana decidiu que uma selfie tirada por um macaco não poderia ser protegida justamente pela ausência do elemento humano.

Ainda assim, Howell reconheceu que o uso de ferramentas de IA generativa levantam complexas questões a serem enfrentadas pelo Copyright Act, especialmente ao se levar em conta o entendimento doutrinário dominante de que todo sistema legal de propriedade intelectual norte-americano deve acompanhar, ainda que sem mudanças materiais, os avanços tecnológicos. No entanto, o requisito da contribuição humana parece continuar se firmando como condição sine qua non, mesmo diante da força da inteligência artificial.


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Outro ponto incidente levantado diz respeito à necessária contribuição humana de Thaler para a geração da obra pelo Creative Machine. Tal contribuição consiste nos chamados prompts, uma série de comandos em linguagem escrita a serem interpretados pelo sistema na geração de sua resposta visual. No entanto, ainda que haja um componente humano relevante na construção da obra, a Corte destacou que há também um alto grau de discricionaridade na transformação dos comandos em imagens, de forma que, por mais que exista direcionamento, não existe qualquer gerência do usuário na materialização da interpretação de um sistema.

Ainda que o país anglo-saxão e seu sistema jurídico de common law adote o modelo do copyright, o caso serve como importante marco de discussão para a realidade brasileira e levanta pontos importantes. Assim, considerando as diferentes implicações jurídicas que podem derivar de uma tecnologia potencialmente tão disruptiva quanto a internet, é fundamental antecipar questões sensíveis e compreendê-las na ótica do ordenamento nacional.

De início, cabe uma diferenciação conceitual entre os sistemas do copyright e o dos direitos autorais, este último usado no Brasil por força da Lei 9.610/98. O copyright, como toda estrutura de proteção legal à propriedade intelectual nos EUA, é baseado na teoria utilitária, segundo a qual a lei deve oferecer incentivos de direitos exclusivos por determinado tempo com o intuito de incentivar agentes econômicos a produzirem obras culturalmente valiosas. Assim, a base principiológica do utilitarismo gira em torno da possibilidade comercial do lucro do autor, encontrando, dessa forma, um equilíbrio entre a restrição imposta à coletividade pela exclusividade de direitos e o estímulo à produção cultural.

Já a estrutura dos direitos autorais se afasta, em sua concepção, da visão utilitária do copyright. Isso porque, principiologicamente, os direitos autorais, ainda que prevejam uma série de direitos patrimoniais, são fortemente ligados a aspectos morais da criação, uma vez que conceitualmente derivados da visão revolucionária francesa do espírito humano como fonte criativa, a qual concebe a base da teoria personalíssima da propriedade intelectual.


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Segundo tal postulado, uma pessoa que empenha trabalho para produzir uma obra artística incorpora, também, parte de sua personalidade na materialização, como uma exteriorização de seu espírito criativo, algo intimamente ligado à própria natureza humana. Assim, tal teoria entende que a proteção à personalidade se estende a manifestações materiais, entendendo a proteção à propriedade intelectual para além dos interesses financeiros, mas como a tutela da própria personalidade individual.

Superadas e compreendidas as diferenças teóricas, é possível atestar de plano que, na realidade brasileira, casos como o citado Thaler v. Perlmutter provavelmente produzirão decisões similares. À luz da Lei 9.610/98, é inconcebível, por princípios e força dispositiva de seus artigos 7º e 11 (entre outros), imaginar a extensão protetiva da lei a obras produzidas por elementos não humanos. Mais do que isso, é inimaginável, na estrutura normativa atualmente vigente no país, a atribuição de direitos morais a sistemas de inteligência artificial posto que, para tanto, reconhecer-se-ia a personalidade de tais máquinas. Na mesma linha, dificilmente reconhecer-se-ia como contribuição suficiente para autoria de obra visual a mera produção de prompts textuais inseridas no sistema de IA.

No entanto, ainda que pareça mais simples a questão da aplicabilidade dos direitos autorais em obras produzidas por inteligência artificial no ordenamento brasileiro, é importante ressaltar que existem questões derivadas que merecem atenção. Entre elas, destaca-se o uso de obras protegidas por direitos autorias para treinar modelos de IA, a potencial responsabilidade pela geração de obras infringentes por sistemas de IA e o tratamento jurídico a ser dedicado a obras geradas por IA que imitam a identidade ou estilo particular de artistas humanos.

Assim, é forçoso reconhecer que tais discussões e seus desdobramentos legais podem ter enorme impacto em diversas indústrias para além da de obras visuais. Atualmente, aplicam-se sistemas dedicados de IA para a geração de coleções e peças de moda, produção textual e composição e produção musical, com alguns casos de infringência já apontados nos EUA. Espera-se, portanto, que imbróglios dessa natureza sejam cada vez mais comuns na era da IA, sendo essencial antecipar os problemas e produzir soluções.

*Gustavo Bayum de Paiva e Marina M. J. de Andrade, sócios Bayum de Paiva & Andrade Advogados.

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