Contexto do voto plural e seus vieses

Sociedades de extrema relevância econômica adotam esse tipo de estrutura, como Facebook, Google, Groupon, Alibaba/Canva
Sociedades de extrema relevância econômica adotam esse tipo de estrutura, como Facebook, Google, Groupon, Alibaba/Canva
Apesar das críticas, adoção da prática garante flexibilidade e equilíbrio aos interesses dos acionistas.
Fecha de publicación: 10/11/2021

Apesar de a doutrina informar que a origem do voto plural seria bem mais antiga, o seu desenvolvimento acabou ocorrendo apenas no século XX, notadamente em decorrência dos fenômenos econômicos ocorridos na Europa após a 1ª. Guerra Mundial. O seu objetivo era preservar as economias nacionais assoladas à época, já que estrangeiros poderiam adquirir ações por preços muito baixos em bolsas de valores em virtude da enorme desvalorização monetária.

Ocorre que, com a utilização cada vez maior desse instituto, passaram a existir ações com dezenas, centenas e até milhares de votos a mais do que os das demais ações, tendo vários autores escrito sobre as consequências nefastas e abusos decorrentes da adoção do voto plural. Por essa razão, o voto plural acabou sendo restringido ou até mesmo proibido em vários países, tendo sido muitas vezes substituído por outros mecanismos, como ações preferenciais sem direito de voto, capital social autorizado, convenções de voto e limitações ao direito de voto.


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Foi o que ocorreu também no Brasil. O Decreto-Lei nº 2.627/40, assim como a Lei nº 6.404/76 (a “Lei das Sociedades Anônimas”), em seu artigo 110, vedavam expressamente a instituição do voto plural.

Interessante notar que, a despeito da vedação formal ao voto plural, a Lei das Sociedades Anônimas estabelecia a existência de voto privilegiado para a eleição de membros dos órgãos da administração (art. 16 e 18), bem como, a partir de 2001, as golden shares (art. 17, §7º), cujos efeitos se aproximariam daqueles das ações com voto plural. Além disso, a Lei das Sociedades Anônimas sempre possibilitou a criação de ações preferenciais sem direito de voto e a criação de limitações ao número de votos dos acionistas.

Apesar das críticas ao voto plural, sua adoção - com limitações para minimizar os seus inconvenientes – pode garantir flexibilidade e equilíbrio aos interesses dos acionistas. Ele é um instrumento voltado basicamente ao reconhecimento do valor pessoal de determinados acionistas, permitindo que acionistas cuja atuação seja fundamental ao desenvolvimento social conquistem uma maior participação ou mesmo o controle da sociedade com uma menor participação econômica. Assim, ele pode beneficiar pincipalmente fundadores de empresas que, precisando se ater a um planejamento de longo prazo, necessitam captar recursos junto a terceiros para desenvolver suas atividades. Por essa razão o voto plural acabou gradativamente retornando aos ordenamentos jurídicos estrangeiros.

Sobre as restrições ao voto plural, a doutrina menciona como possibilidades principalmente a fixação de um limite ao número de votos, a restrição à sua transmissão e a restrição quanto ao seu período de vigência (sunset clause), além de se entender que o voto plural deveria ser suspenso ou ter o seu exercício proibido em determinadas deliberações.

E foi exatamente dessa forma que o voto plural foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela nova Lei nº 14.195, de 26/08/2021.

Assim, as ações ordinárias agora também poderão ser de classes diversas em função da atribuição de voto plural, tendo sido introduzidas várias restrições ao voto plural, a saber: (i) o voto plural não poderá ser superior a 10 (dez) votos por ação ordinária; (ii) salvo se quórum mais alto não for exigido pelo estatuto social, a criação de classe de ações ordinárias com voto plural depende do voto favorável de acionistas que representem: (a) metade, no mínimo, das ações com direito a voto; e (b) metade, no mínimo, das ações preferenciais sem direito a voto ou com voto restrito, se emitidas, reunidas em assembleia especialmente convocada (assegurado aos acionistas que não concordarem com a criação dessa classe de ações o direito de se retirarem da companhia mediante reembolso do valor de suas ações); e (iii) o estatuto social poderá também estipular o fim da vigência do voto plural condicionado a um evento ou a termo, sendo que (a) seu prazo de vigência inicial será de até 7 (sete) anos, prorrogável por qualquer prazo (desde que sejam observadas as novas regras quanto a quórum de deliberação também para a aprovação da prorrogação; e sejam excluídos das votações os titulares de ações da classe cujo voto plural se pretende prorrogar); e (b) serão assegurados os direitos previstos aos acionistas dissidentes.

Adicionalmente, para a aprovação de matérias cujos quóruns estão expressamente previstos na legislação aplicável, com base em percentual de ações ou do capital social e sem menção ao número de votos conferidos pelas ações, o cálculo deverá desconsiderar a pluralidade de voto.

Além das restrições acima, as ações com voto plural serão automaticamente convertidas em ações ordinárias sem voto plural na hipótese de (i) transferência, a qualquer título, a terceiros (exceto se o alienante permanecer indiretamente como único titular de tais ações e no controle dos direitos políticos por elas conferidos; se o terceiro for titular da mesma classe de ações com voto plural a ele alienadas; ou se a transferência ocorrer no regime de titularidade fiduciária para fins de constituição de depósito centralizado); ou (ii) o contrato ou acordo de acionistas, entre titulares de ações com voto plural e acionistas que não sejam titulares de ações com voto plural, dispor sobre exercício conjunto do direito de voto.

A lei proibiu ainda a utilização do voto plural nas deliberações sobre remuneração dos administradores e transações com partes relacionadas que atendam aos critérios de relevância a serem estabelecidos pela CVM. Foi também vedada a sua utilização pelas empresas públicas, de economia mista, suas subsidiárias ou controladas direta e/ou indiretamente pelo poder público.

Diversas outras regras específicas relacionadas ao voto plural foram também introduzidas para as companhias abertas. Nesse sentido, vale ressaltar que, nos termos da nova lei, a criação de classe de ação com voto plural deverá ocorrer previamente à negociação de quaisquer ações ou valores mobiliários conversíveis em ações de emissão da companhia em mercados organizados de valores mobiliários.


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Com essa atualização, e apesar das críticas à nova lei, a legislação brasileira finalmente se moderniza e se aproxima das legislações existentes em vários outros países no que se refere à admissão do voto plural. Sociedades de extrema relevância econômica adotam esse tipo de estrutura (como Facebook, Google, Groupon, Alibaba), o que nos leva a assumir que ela pode ser economicamente eficiente.

Finalmente, é interessante verificar que, apesar de não haver qualquer previsão sobre o voto plural no âmbito das sociedades limitadas, a vedação expressa constante da Lei das Sociedades Anônimas impedia a sua utilização como regra subsidiariamente aplicável. Agora, com a permissão expressa introduzida na Lei das Sociedades Anônimas (e enquanto uma regulamentação específica para as sociedades limitadas não é criada), a tendência parece ser que sócios passem a considerar a introdução de tais regras também em contratos sociais de sociedades limitadas.

*Thereza Maria Sarfert Franco Montoro e Bruna Toledo Pacheco são sócias da área de Fusões e Aquisições do Demarest.

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