A cultura do cancelamento e suas consequências jurídicas

A cultura do cancelamento é quando usuários passam a promover ações para que determinado conteúdo seja retirado da internet/Pixabay
A cultura do cancelamento é quando usuários passam a promover ações para que determinado conteúdo seja retirado da internet/Pixabay
Questão precisa ser analisada com cuidado para não evitar a infração a outros direitos.
Fecha de publicación: 08/09/2020

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Atualmente vivemos um momento em que caso determinada pessoa, seja ela física ou jurídica, efetue um posicionamento contrário ao que parte dos consumidores ou usuários da rede acredita ser o correto, eles passarão a promover ações para que determinado conteúdo seja retirado da internet e a pessoa deixe de ter o seu espaço de fala ou, no caso de empresas, perca a sua lucratividade.

Referida prática em alguns momentos buscou promover a diversidade, tentando conter ações que poderiam ser classificadas como preconceituosas, buscando de algum modo tornar realidade as normas da Constituição federal que prevê a igualdade e o fim da discriminação. Muitos acreditam ainda estar em linha com os dizeres da Lei nº 7.716 de 1989 e da sua interpretação à luz do ADO 26 e MI 4733, que prevê os crimes contra o ódio, em especial quanto a cor e o relacionado à homofobia.

A ideia original desta atividade, também chamada de “cultura do cancelamento”, era dar voz às questões sociais e ambientais. Como um reflexo do avanço da proteção dos direitos fundamentais, previstos na Constituição, onde passamos de uma valorização da liberdade, tão defendida em outros momentos da história, para um enfoque no direito à dignidade da pessoa humana, em especial a partir dos anos 2000 com o advento da internet em que tudo se tornou muito mais amplo e existe uma aparência de ampla liberdade.

Contudo, cada vez mais vemos esse fenômeno se prolongando sem que exista qualquer análise acerca da possibilidade ou não deste procedimento, sem uma devida análise do conteúdo ou uma curadoria. Pessoas e contas são “canceladas” a todo momento por existir uma análise superficial de determinado fato, o qual é interpretado como ofensivo por parte da sociedade, ainda que seja visto de forma descontextualizada ou mesmo em um momento distinto do atual.

Uma análise de conteúdo deveria ser realizada com um amplo entendimento do que é vivido e falado, sob pena de se classificar como uma ofensa aos direitos da personalidade e até mesmo um crime contra a honra de cada um. Inclusive da pessoa jurídica, a qual também pode ser objeto de crimes como calúnia e difamação.

Para tanto, existem inúmeros exemplos. Se a história e a arte nos relembram o histórico emblemático caso das “Bruxas de Salem”, mais atual e nacional temos o caso da Escola Base. Trata-se de um episódio em que nos anos 1990 os proprietários e funcionários da instituição foram considerados pedófilos pela mídia e pela população após informações desencontradas e tendenciosas que foram publicadas.

Infelizmente, essa divulgação antecipada e sem uma ampla análise do caso, acabou por destruir a escola, a carreira e mudar totalmente o rumo dos acusados, que foram considerados inocentes pela Justiça posteriormente.

Como consequência desses casos, não apenas há o dever de reparação do Estado por seus erros na condenação e na aplicação de penalidades sem a finalização do devido processo legal, mas também devemos lembrar do dever de reparação, oriundo da responsabilidade civil, que recai sobre todo aquele que publica esse tipo de conteúdo sem se atentar para esses fatos.

No caso da cultura do cancelamento, todos aqueles que presenciam o fato que acreditam que devem ser cancelados, ainda que na busca por uma “Justiça social”, acabam por ofender a honra ou a imagem de alguém, colocando um conteúdo de certo modo vexatório, sem uma devida análise do caso, podem ser alvo de uma ação de reparação e serem condenados a pagar uma indenização.

Nos processos oriundos de tais casos quem efetuará a análise do conteúdo e da sua repercussão será um juiz, que funcionará como um curador do que está sendo difundido. Muitas vezes um processo judicial como esses poderia ser evitado se as partes realizassem a devida busca de informações, uma verdadeira curadoria do conteúdo e até mesmo o ato de empatia de entender o que ocorreu de fato.

Isto porque uma busca por igualdade e dignidade da pessoa humana não pode passar dos limites e realizar uma nova violação à lei, com o intuito de se macular o direito de outra por essa pessoa ter cometido um ilícito. Se houver uma violação de direitos para concretizar outro, não teríamos a Justiça ou o direito, mas sim uma busca por vingança.

No momento em que “escolhemos o Estado” como o detentor do poder de julgar e punir, colocamos na mão de outro o direito “de vingança” e de avaliação da situação, com o intuito de não cairmos na barbárie. “Assinamos o contrato social” para evitarmos uma desregulação e conseguirmos atingir certa “paz social”.

É certo que os poderes Executivo, Judiciário e o Legislativo não são os donos da verdade ou justos sempre, mas são os instrumentos que encontramos na atualidade para conseguirmos atingir uma paz social e o desenvolvimento social.

A cultura do cancelamento iniciou com um objetivo muito nobre, mas precisa ser analisada com muito cuidado para não evitar a infração a outros direitos, como os direitos da personalidade, a liberdade de expressão e a própria evolução de cada um, visto que as pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas, podem mudar, crescer e alterar o seu posicionamento ao longo do tempo.

Dessa forma, ações como a analisada neste artigo devem sempre pensar que a liberdade, ainda que seja com a intenção de buscar uma “Justiça social”, deve ter como base: o respeito à honra, imagem e privacidade; e a ética para com a “verdade”. Trata-se de uma forma de tentar equalizar determinados direitos, evitando abusos e em busca da paz social, visto que mesmo  em lados opostos historicamente é preciso analisar cada conduta, se será prestigiada a dignidade da pessoa humana ou a liberdade. 

*Fernanda Galera é mestre em direito comercial com foco em propriedade intelectual pela Universidade São Paulo e sócia da firma Daniel Advogados.

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