Evolução e limites territoriais das decisões da Lei da Ação Civil Pública pelo STF

O que mudou nos último anos /Pixabay
O que mudou nos último anos /Pixabay
Uma forma de conferir segurança jurídica às relações já estabilizadas e preservar a coisa julgada seria modular os efeitos da eventual declaração de (in)constitucionalidade.
Fecha de publicación: 12/05/2020
Etiquetas: Brasil

Muito embora o direito brasileiro já contasse com a ação popular como meio de defesa dos interesses difusos e coletivos, foi a partir da Lei nº 7.347/1985 (LACP) que se instituiu a Ação Civil Pública como instrumento processual adequado para viabilizar a proteção jurisdicional ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, à defesa da ordem econômica, à ordem urbanística, e a qualquer outro interesse ou direito difuso ou coletivo.

 

Especificamente em relação à eficácia da sentença proferida em ação civil pública, a redação original do artigo 16 da LACP estabelecia que “a sentença civil fará coisa julgada "erga omnes", exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.

 

Logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, veio a Lei nº 8.078/1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), que trouxe normas de caráter material relativas à proteção e defesa do consumidor e normas de caráter processual, atinentes à defesa dos interesses difusos e coletivos das mais diversas ordens.

 

Em relação à eficácia territorial da sentença proferida em ações coletivas, o artigo 103, inciso III, CDC estabeleceu que a sentença produziria efeitos erga omnes ou ultra partes, a depender da natureza do direito envolvido. Fato é que, em consonância com o que já estabelecia o artigo 16 da LACP à época, o artigo 103 do CDC levava à necessária conclusão de que a coisa julgada transcendia o âmbito da competência territorial, assumindo, então, uma dimensão nacional.

 

Ocorre que, em 1994, o Poder Executivo editou a Medida Provisória nº 1.570, que posteriormente foi convertida na Lei nº 9.494/1997, alterando a redação do artigo 16 da LACP para restringir os efeitos da sentença aos limites territoriais da competência do órgão que proferiu a sentença.

 

Com essa alteração legislativa, instituiu-se duas normas conflitantes entre o que preconiza a LACP e o CDC – duas leis que compõem o microssistema de tutela coletiva – sobre os efeitos das decisões proferidas no âmbito de ações coletivas.

 

Esse evidente conflito foi observado pela doutrina, que majoritariamente passou a defender que o artigo 16 da LACP não era aplicável às ações coletivas regidas pelo CDC.

 

“Disso tudo resulta uma primeira conclusão: o art. 16 da Lei nº 7.347/85, em sua nova redação, só se aplica ao tratamento da coisa julgada nos processos em defesa dos interesses difusos e coletivos, podendo-se entender modificados apenas os incs I e II do art. 103 do CDC. Mas nenhuma relevância tem com relação ao regime da coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos, regulado exclusivamente pelo inc. III do art. 103 do CDC, que permanece inalterado", analisa Ada Pellegrini Grinover.

 

E, paradoxalmente, é justamente no campo da tutela jurisdicional dos interesses individuais homogêneos que a jurisprudência vinha admitindo com maior firmeza a abrangência em nível nacional da coisa julgada erga omnes (v. supra nº 2), provocando a reação do executivo.

 

Mas há mais. Ineficaz, pelas razões expostas, com relação à coisa julgada nas ações em defesa de interesses individuais homogêneos, o acréscimo introduzido pela medida provisória ao art. 16 da LACP é igualmente inoperante, com relação aos interesses difusos e coletivos. Já agora por força da alusão à competência territorial.” (In Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, 8ª Edição, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2004, Pág. 920/921.)

 

Já a jurisprudência, antes pacífica no sentido de que as decisões proferidas em ações coletivas produziriam efeitos de âmbito nacional, passou a entender que a sentença proferida em ação civil pública possuía eficácia limitada à competência territorial do órgão julgador, mas sem especificar se essa limitação se aplicava inclusive para os casos em que o direito tutelado era relativo a uma relação de consumo.

 

Fato é que essa discussão chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, até que se pacificasse, muitas idas e vindas foram observadas na jurisprudência daquela Corte.

 

A título de exemplo, em 2006, ao julgar o Recurso Especial nº 293.407/SP, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a limitação territorial dos efeitos da sentença, nos seguintes termos:

 

“Assim como não cabe centralizar em uma Vara de Brasília a competência para todas as ações civis públicas do país, pelos evidentes inconvenientes que disso decorreriam, também inadmissível que sentença com trânsito em julgado de pequena comarca do interior desse imenso Brasil possa produzir efeito sobre todo o território nacional.”

 

Posteriormente, em 17 de fevereiro de 2009, no âmbito do Recurso Especial nº 399.357/SP, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu pela inaplicabilidade do artigo 16 da LACP nas ações coletivas relativas às relações de consumo. Essa mesma tese foi vencedora no julgamento ao Recurso Especial nº 411.529/SP, que teve início em 2005 e apenas se encerrou cerca de três anos depois.

 

Apesar da enorme discussão que precedeu o julgamento desses recursos especiais, o Superior Tribunal de Justiça alterou seu entendimento ao julgar os embargos de divergência opostos pelas instituições financeiras que constavam do polo passivo das referidas ações no âmbito do Recurso Especial nº 399.357/SP.

 

Ao julgar referidos embargos de divergência em 9.9.2009, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça revisou posicionamento anteriormente adotado, dando plena vigência ao artigo 16 da LACP mesmo aos casos que tratassem de relações de consumo (Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 399.357/SP).

 

Por fim, em julgamento de 2011, o Superior Tribunal de Justiça julgou novamente a questão, ocasião em que, por maioria de votos, a Corte Especial estabeleceu que a competência territorial limita o exercício da jurisdição e não os efeitos ou a eficácia da sentença proferida no âmbito de ação coletiva.

 

Conforme entendeu o Superior Tribunal de Justiça, a competência para julgar casos relacionados a danos de âmbito nacional ou regional é do foro da capital do estado ou do Distrito Federal, e aplicar o artigo 16 da LACP faria com que apenas as capitais dos estados tivessem garantida a possibilidade de tutela do direito.

 

“A liquidação e a execução individual de sentença genérica proferida em ação civil coletiva pode ser ajuizada no foro do domicílio do beneficiário, porquanto os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo “ diz a decisão do STJ.

 

Naquela ocasião, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu importante distinção entre a coisa julgada e os efeitos da sentença, no sentido de que a coisa julgada é uma qualidade da sentença, que torna imutáveis os seus efeitos. Já os efeitos da sentença produzem-se erga omnes, para além dos limites da competência territorial do órgão julgador.

 

A partir desse julgamento, a matéria foi pacificada no Superior Tribunal de Justiça mas está na iminência de ser novamente examinada pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do Recurso Extraordinário nº 1.101.937, que tramita sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes.

 

A repercussão geral do Recurso Extraordinário em questão foi reconhecida, tendo sido fixado para análise o Tema 1075: “Constitucionalidade do art. 16 da Lei 7.347/1985, segundo o qual a sentença na ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator”.

 

Em decisão recente, o ministro Alexandre de Moraes determinou a suspensão nacional de todos os processos em andamento em que se discuta a abrangência do limite territorial para eficácia das decisões proferidas em ação civil pública, tratado no artigo 16 da LACP.

 

Muito embora não seja possível precisar a data de julgamento, assumimos que o Recurso Extraordinário nº 1.101.937 será julgado em futuro próximo à medida em que o artigo 1.035 do Código de Processo Civil estabelece que “o recurso que tiver a repercussão geral reconhecida deverá ser julgado no prazo de um ano e terá preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus.”

 

É possível que, em breve, o Supremo Tribunal Federal reverta o posicionamento atualmente dominante no Superior Tribunal de Justiça, fato que poderá trazer consequências ao microssistema de tutela coletiva no Brasil.

 

Caso se entenda pela constitucionalidade e plena vigência do artigo 16 da LACP, haverá o risco de uma multiplicação de demandas idênticas, em cada um dos 26 estados da federação e no Distrito Federal, algo que não aconteceria se fossem reconhecidos os efeitos nacionais das decisões proferidas em ações coletivas.

 

Com exceção das questões de administração judiciária, relacionadas ao número de processos ajuizados e à necessidade de dar vazão a essa demanda, para que seja efetivado o acesso à justiça, a possibilidade de multiplicação de ações coletivas tratando do mesmo tema traz outra preocupação: o risco de decisões conflitantes sobre um mesmo tema.

 

Isso porque é possível que – caso declarado constitucional o artigo 16 da LACP -, no Estado de São Paulo, entenda-se que determinado fornecedor é responsável pelos danos causados aos consumidores de determinado produto, mas que, no estado de Minas Gerais, a decisão judicial seja diferente e os consumidores não tenham a mesma sorte. A própria credibilidade da tutela coletiva e do Poder Judiciário, bem como a segurança jurídica, estarão ainda mais em xeque.

 

Se, pelas razões acima, limitar a eficácia da coisa julgada proferida em ações coletivas ao âmbito dos limites territoriais do órgão prolator já macula e enfraquece o próprio instituto da tutela coletiva, há também outra consequência que deve ser ponderada.

 

Segundo o artigo 525, § 15, do Código de Processo Civil “se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.Trata-se da positivação de verdadeira hipótese de cabimento de ação rescisória no caso de declaração de constitucionalidade/inconstitucionalidade de dispositivo legal no qual se baseou determinada decisão, exatamente como no caso em exame.

 

Muito embora exista na doutrina posicionamento no sentido de que o artigo 525, § 15, do Código de Processo Civil é inconstitucional, há entendimento na jurisprudência no sentido de que o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal tem o condão de desconstituir decisões transitadas em julgado que lhes sejam contrárias.

 

Por mais essa razão, é patente que a declaração de constitucionalidade do artigo 16 da LACP, caso ocorra, poderá colocar em risco a tão necessária segurança jurídica, com a possibilidade de revisão de inúmeras decisões que, no âmbito de processos coletivos, beneficiaram jurisdicionados no país inteiro.

 

Ainda que tal cenário não possa servir de fundamento para a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade do referido dispositivo legal, trata-se de consequências a serem consideradas, ao menos para que, no âmbito do acórdão a ser proferido pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do Recurso Extraordinário nº 1.101.937, seja ponderada a conveniência de modulação dos efeitos da decisão, nos termos do que preconiza o artigo 21 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

 

Uma forma de conferir segurança jurídica às relações já estabilizadas e preservar a coisa julgada seria, a nosso ver, modular os efeitos da eventual declaração de (in)constitucionalidade de forma que somente os casos futuros sejam afetados (efeitos ex nunc), afastando-se o risco de nova judicialização de casos já julgados e que envolvam tutela coletiva de consumidores.

 

* Priscilla M. de Freitas A. Costa é associada Laura Beatriz. S. Morganti é consultora do Pinheiro Neto Advogados.

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