A importância dos acordos de leniência na legislação brasileira

A lei estabelece que o órgão competente no âmbito do Poder Executivo Federal para celebração desses acordos é a Controladoria Geral da União/Pixabay
A lei estabelece que o órgão competente no âmbito do Poder Executivo Federal para celebração desses acordos é a Controladoria Geral da União/Pixabay
Várias notas técnicas analisam a sistematização do entendimento da Procuradoria da República Federal.
Fecha de publicación: 25/06/2020
Etiquetas: Brasil

Quase sete anos depois da promulgação da Lei 12.846/2013, que dispõe sobre a responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas por atos contra a administração pública, ainda há diversas dúvidas práticas sobre as regras aplicáveis aos acordos de leniência celebrados com autoridades públicas brasileiras. Essas dúvidas se reverberam em insegurança jurídica e críticas à legitimidade e transparência do processo.

Várias notas técnicas versam sobre a sistematização do entendimento da Procuradoria da República Federal sobre os benefícios para o interesse público, além de diversos outros aspectos, pertinentes à celebração de acordos de leniência.

Como ressalva inicial, a Lei 12.846/2013 estabelece que o órgão competente no âmbito do Poder Executivo Federal para celebração desses acordos se trata da Controladoria Geral da União. Porém, como os atos contra a administração pública podem, no mais das vezes, configurar também ilícito penal, o MPF vem exercendo competência comum com esse órgão de controle, como ocorreu nos acordos com a SOG Óleo e Gás S/A, assinado em outubro de 2014, e com a Construtura Purumã, assinado em setembro de 2019.

É preciso analisar no que consistem essas notas técnicas, ou, por outras palavras, qual a natureza jurídica desses atos publicados. As Câmaras de Coordenação e Revisão (CCR) são órgãos do MPF (artigo 43, IV, da Lei Complementar 75/93), cujos coordenadores são designados pelo Procurador-Geral da República (artigo 49, IV, LC 75/93). As CCR possuem as atribuições de coordenar, integrar e realizar a revisão do exercício funcional da instituição (artigo 58, LC 75/93).

As CCRs podem ser organizadas por matérias e possuir seu próprio regimento interno (artigo 59, caput e parágrafo único, LC 75/93). Atualmente, existem sete CCRs, cada qual dividida por uma atuação temática. Segundo o regimento da 5ª CCR, esta deve concentrar suas atividades na área relativa ao combate à corrupção (artigo 1º, do Regimento Interno da 5ª Câmara, aprovado pela Resolução CSMPF 189/2018). Para essa função, a Câmara pode aprovar enunciados, orientações e notas técnicas sobre os temas de sua competência (artigo 6º, II, do Regimento Interno), além de ser o órgão responsável pela homologação interna dos acordos de leniência.

Por esse aspecto, conclui-se que as notas técnicas possuem natureza eminentemente esclarecedora, de reunião e consolidação de entendimentos, e não natureza normativa (vinculante). Apesar de lhes faltar caráter vinculativo, isso não retira de modo algum sua relevância jurídica, de modo que devem ser levados em consideração pelos profissionais do Direito que atuem na área.

A primeira nota técnica foi publicada em novembro 2017 e possui por objetivo assessorar os membros do MPF sobre questões ligadas a acordos de leniência e seus efeitos. No texto da nota técnica, há diversas considerações relevantes, entre as quais está a ponderação de que o objetivo fundamental do instrumento da leniência da Lei 12.846/2013 consiste em “angariar provas e não obter o ressarcimento (ao menos no momento em que realizado o acordo)”, sendo que “a leniência não é juridicamente vocacionada e instituída para agilizar a obtenção de reparação patrimonial do dano, nem para isto deve ser primariamente concebida e utilizada, conquanto tenha grande potencial para também atingir tal desiderato”.

Essa nota técnica reconhece a importância da transversalidade da leniência. O ente privado busca segurança e eficiência no acordo, de tal modo que receba proteção jurídica perante os diversos e diferentes órgãos sancionadores com competência para punir as condutas desviantes praticadas e confessadas.

A nota defende que, como o Ministério Público possui maior abrangência funcional (titular da ação penal e competência para investigar e processar atos de improbidade) quando comparado à outras instituições (a exemplo do TCU, CGU, CADE e da própria Polícia Federal), essa instituição não pode ser alijada das negociações tendentes à leniência, sob pena de ineficiência desse instrumento. Isso porque, caso esse acordo seja celebrado sem sua participação e anuência, os ilícitos penais cometidos pelas pessoas físicas integrantes da pessoa jurídica leniente não serão objeto de pacto processual. O efeito seria que essas pessoas físicas poderiam ser plenamente processados, sendo necessária a “cooperação interinstitucional” e um regime de compartilhamento de informações obtidas, com a adesão de outros órgãos ou entidades para que haja proteção também na esfera penal.

Justamente pela omissão da Lei 12.846/2013 quanto à posição das pessoas físicas diante do acordo de leniência e de seus efeitos, é que a a nota reconhece a possibilidade e relevância de os acordos considerarem a inclusão delas nesse instrumento, permitindo um desdobramento do acordo de leniência, celebrado no plano civil, mediante a assinatura de uma delação na esfera penal. A relação entre os dois acordos não foi tratada na nota (se de dependência ou independência, por exemplo).

À época dessa nota técnica, cabe destacar que diversos acordos de leniência já haviam sido celebrados exclusivamente entre MPF e empresas lenientes, nos quais se fez prever a possibilidade de pessoas físicas aderirem aos acordos celebrados, mediante manifestação de adesão ao Parquet Federal, como faz exemplo o próprio acordo da Braskem, assinado em dezembro de 2016 (cláusula 10ª).

A Nota Técnica 1/2020 se propõe a examinar diversos aspectos relacionados a acordos de leniência, dedicando atenção ao termo de adesão de pessoas físicas em acordos celebrados por pessoas jurídicas com o MPF, o que, como sublinhado acima, já constituía prática estabelecida nos acordos assinados pela Procuradoria da República.

Segundo a Nota Técnica, a adesão aos termos do acordo de leniência seria prática instituída para suplantar omissão da Lei 12.846/2013, que de fato não previu como o acordo se comunicaria com a posição das pessoas físicas que teriam agido em nome da pessoa jurídica. A adesão ao acordo constituiria, assim, medida para aumentar a eficiência aos acordos de leniência (ou, talvez em termos mais pragmáticos, deixá-los mais atrativos), evitando que as pessoas físicas fiquem sem a leniência conferida à pessoa jurídica.

Na primeira Nota Técnica, essa possibilidade já havia sido considerada, mas em termos descritivos que se apresentavam mais coerentes com os diplomas legais: a pessoa jurídica deveria assinar o acordo de leniência e a pessoa física delação ou colaboração premiada, muito embora a prática da adesão já estivesse consolidada (v. acordos citados).

A possibilidade de adesão deveria ser parte integrante de um Programa de Leniência, o qual deveria ser estabelecido pelo próprio MPF, conforme entendimento das signatárias da Nota Técnica. Esse programa deveria ser criado como parte de uma política pública consistente de Estado e estaria justificada por diversos aspectos (v.g. deteção de ilícitos, obtenção de provas, cessação da infração e disuassão de práticas futuras), além de permitir confiança e segurança aos infratores interessados.

Ainda de acordo com a Nota Técnica, não há nenhum impedimento legal para que, no texto do acordo de leniência, haja a previsão da adesão de pessoas físicas colaboradoras, podendo o pacto celebrado prever as condições de subscrição. Os benefícios e obrigações pertinentes deverão ser tratados e formalizados em instrumento próprio pelo colaborador e constituirá um desdobramento do acordo de leniência originário. A efetiva adesão está sujeita a aceitação pelo membro do MPF e dependerá de homologação pela 5ª Câmara de Revisão do MPF.

A Nota Técnica ainda trata da independência funcional de membros do MPF, tema relevante na medida em que o ente ministerial signatário do acordo pode receber elementos de informação e provas cujo processamento caberia a outro ente, em função de regras de competência territorial. De acordo com a nota, “o acordo celebrado e homologado veiculará a unidade institucional” perante outros membros da instituição, não sendo possível a outro membro rejeitar a validade e eficácia do acordo.

A nota reconhece, por outro lado, que acordos de leniência abarquem fatos que já estejam sob investigação por unidade ministerial não signatária do acordo, inclusive com medidas judiciais já iniciadas. Nesses casos, a nota admite a possibilidade da unidade ministerial postular contra a invalidade do acordo, devendo a 5ª CCR resolver essa forma de litígio, determinando correções no processo de celebração da leniência.

Em outra passagem, todavia, a nota define que o membro signatário do acordo deve se posicionar não como membro ministerial da unidade em que lotado, mas como o próprio Ministério Público em seu caráter indivisível, procurando ter ciência da situação da instituição no caso concreto como um todo. Também seria dever da pessoa jurídica e pessoa física envolvidas no acordo apontar todas as investigações em curso (que sejam de seu inequívo conhecimento).

Está tratado ainda nessa Nota Técnica a questão de a pessoa jurídica colaboradora e pessoas físicas colaboradoras trazerem ao conhecimento do membro do MPF celebrante fatos ilícitos novos (que não estejam sendo objeto de investigação e, ao que se entende, que não haviam sido declarados previamente de qualquer modo), “conexos ou não, fatos que estão inseridos na atribuição funcional cível (e/ou criminal) de outros membros do MPF”. A nota coloca como questão o que motivaria colaboradores a aportarem novos fatos e responde a essa dúvida com a afirmação de que seria a concessão de benefícios adicionais, o que deveria ser incentivado e praticado pelo membro do MPF signatário.

No mesmo tópico, a nota destaca a importância da homologação dos acordos pela 5ª Câmara de Revisão, a qual possui condições de verificar e atestar se os interessados na leniência teriam realizado escolha proposital de membros do MPF para negociar e celebrar o acordo, a fim de subtrair a legítima atuação de membros que o interessado teria ciência não serem favoráveis ao acordo.

Em outro tópico, a Nota Técnica discute a relevante questão da homologação judicial dos termos de adesão, pois, apesar do nome, esses implicam, pela sua natureza, colaboração premiada, que deve observar a legislação vigente, como a própria nota reconhece. Por consequência, o termo de adesão deve ser submetido a homologação judicial, como preconiza o artigo artigo 4º, § 7º, da Lei 12.850/2013, o que deve ser realizado pelo juiz competente para processamento e julgamento dos fatos tratados no termo de adesão, sempre observadas as regras de conexão e continência.

Aqui, deveria pouco importar se a adesão é concomitante ao acordo, ou posterior, pois o princípio do juiz natural deveria sempre prevalecer. Mas a Nota Técnica suscita que as adesões posteriores deveriam ser reconhecidas como tendo conexão instrumental com as primeiras adesões, a fim de evitar uma “pulverização” da colaboração em vários juízos (medida similar à que se busca pela concentração de causas no Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR).

Em tópico derradeiro, a nota técnica discute os benefícios a serem concedidas para a pessoa física. Em resumo, haveria um acordo referencial, a partir do qual poderia haver negociações individuais. Não se discute, porém, como ajustá-los à vista dos benefícios já concedidos para a pessoa jurídica (ela própria já sob a obrigação de enviar diversos documentos e informações que seriam passíveis de delação pelos indivíduos). Apenas se suscita que eles devem ser proporcionais e adequados seja à vista de caracteres subjetivos e objetivos do colaborador, seja à luz da posição dos demais colaboradores signatários.

As duas notas técnicas tratadas servem de importante e rico roteiro ao estudo de acordos de leniência e aos termos de adesão por pessoas físicas. A riqueza de situações fáticas nelas tratadas constitui mais que guia explicativo ao intérprete, mas também revelam a evolução do posicionamento do Ministério Público Federal como instituição no tratamento extramemente delicado desses temas, além de fornecer balizas principiológicas e de interpretação para a atuação em casos concretos.

*Fernando Barboza Dias e Thiago de Paula Ribeiro são sócios do De Paula Dias Sociedade de Advogados.

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