O Direito Econômico Internacional na “guerra mundial” contra a Covid-19

Direito Internacional
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Como ficam os países quando o assunto é a disputa de insumos para combater o coronavírus?
Fecha de publicación: 27/04/2020
Etiquetas: Brasil

A recente atividade legislativa concebida em resposta à crise da Covid-19 não deixa margens para interpretação: estamos em guerra. Para além da PEC 10/2020, apresentada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, como a “PEC do Orçamento de Guerra” e destinada a contabilizar os gastos emergências relacionados à calamidade pública em peça orçamentária distinta do Orçamento da União, outros diplomas foram aprovados no rastro desta mesma névoa.

 

Destaca-se, por exemplo, o Decreto Legislativo 6/2020, que declara o estado de calamidade pública para fins de aplicação da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) ou a própria Lei 13.979/2020 (Lei do Coronavírus), que dispõe sobre os instrumentos disponíveis para o enfrentamento da emergência de saúde pública, como a requisição administrativa, a proteção às atividades essenciais e a restrição excepcional à locomoção internacional, interestadual ou intermunicipal.

 

A guerra, no entanto, é mundial: não somente com todo o globo tendo que, internamente, combater o surto do vírus, mas, no plano internacional, disputar pelos escassos e preciosos recursos necessários às batalhas domésticas. Neste sentido, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, estaria promovendo o açambarcamento mundial de equipamentos de saúde, como máscaras e respiradores, pelos mais diversos meios: desvios de carga, proibição de exportações, cancelamento de contratos e cobertura de ofertas de outros países.

 

Não só o Brasil, mas países como a França e a Alemanha também teriam sido vítimas do que o ministro do interior alemão, Andreas Geisel, classificou como “um ato de pirataria moderna”.

 

Neste contexto em particular, o debate estadunidense vem dando grande destaque para uma obscura lei local, chamada de Defense Production Act. Trata-se de legislação aprovada em 1950, no bojo da Guerra da Coreia, que se insere num vasto leque de normas de direito econômico internacional à disposição do Estado norte-americano – na companhia de diplomas como o Omnibus Foreign Trade and Competitiveness Act e o Foreign Investment Risk Review Modernization Act.

 

Clama-se para que o presidente do país faça uso do versátil arsenal constante do Defense Production Act para o impulsionamento das medidas de combate ao coronavírus.

 

Dentre os instrumentos previstos na lei, dedicados a assegurar a adequação da capacidade produtiva da indústria doméstica para o atendimento da demanda por bens e serviços definidos como essenciais para o interesse nacional, tanto em tempos de paz quanto em condições de emergências, estão: medidas de deslocamento da capacidade existente, como o adimplemento seletivo de contratos estratégicos em detrimento dos demais, a autorização para inadimplemento de obrigações contratuais privadas se a medida for instrumental para o alcance dos objetivos da lei, celebração obrigatória de contratos por atores considerados capazes de suprir a demanda existente pelos bens essenciais, ou mesmo o controle de preços.

 

Há, adicionalmente, um conjunto de medidas destinadas à expansão da capacidade produtiva instalada, tais como a oferta de garantias públicas em financiamentos contraídos por fornecedores de produtos ou serviços essenciais; a concessão de empréstimos nas condições que se fizerem necessárias para a resolução do hiato do produto essencial, a mobilização do poder de compras públicas, ou da promessa de sua utilização, para uso próprio governamental ou para revenda, ou a expansão de plantas fabris privadas, inclusive mediante a instalação de equipamentos de propriedade do governo federal.

 

Quem tentou recentemente adquirir produtos relacionados ao combate da crise em plataformas online com a Amazon pode verificar as implicações práticas da lei, com a oferta controlada de produtos e a venda exclusiva de determinados bens para hospitais ou para o governo dos EUA.

 

Juridicamente, este quadro remete a dois importantes aspectos dos ordenamentos contemporâneos, que deverão ganhar relevância mesmo após o fim da pandemia: o direito econômico e a vocação híbrida de sua disciplina em face do sistema internacional.

 

O direito econômico, como o “conjunto das técnicas de que lança mão o Estado contemporâneo na realização de sua política econômica”, na clássica lição de Comparato, tem sua origem justamente no esforço bélico da Primeira Guerra Mundial.

 

Como já fartamente descrito pela doutrina, a primeira Guerra Total ensejou mobilização inédita em todas as forças econômicas e sociais, implicando, indiretamente, o alargamento das atribuições do Estado – diante do reconhecimento de que a guerra não é vencida somente nos campos de batalha, mas sobretudo nos laboratórios, fábricas e fazendas, expandindo o controle sobre os principais eixos da economia, sobretudo a produção, o abastecimento e o crédito – e convocando o direito a regular extensões crescentes da vida econômica.

 

Entretanto, a simples emergência do direito econômico não explica, por si só, seu conteúdo – e particularmente sua configuração contemporânea. Isso porque a disciplina, e mais notadamente o direito econômico internacional, opera em regime híbrido, fitando, simultaneamente, tal como o busto de Janus, as duas facetas do sistema econômico interestatal, o lado em maior evidência de um “sistema internacional liberal”, mas também seu lado mais oculto, de um “sistema internacional mercantilista”.

 

Pode-se esquematicamente diferenciar as distintas faces do sistema a partir do locus ocupado, em cada uma, pela concorrência e pelo processo competitivo. Na ordem liberal, a concorrência opera no nível das organizações empresariais, responsáveis por catalisar vantagens comparativas nacionais no seio do sistema internacional de trocas.

Este, por sua vez, é calcado na cooperação e na interdependência, enquanto os Estados nacionais atuam como meros facilitadores, garantidores, na notória passagem de Adam Smith, de “paz, tributação leve e uma tolerável administração da justiça”.

 

Por outro lado, na ordem mercantilista, a concorrência se manifesta entre os próprios Estados, unidades econômicas em disputa por excedentes comerciais, como sintomas de sucesso econômico e complexidade produtiva, sendo a concorrência, no plano nacional, objeto dos mais diversos arranjos de arrefecimento e instrumentalização, alcançando, no limite, o controle monopolístico de preços e produtos.

 

No Brasil, o direito econômico da faceta liberal do sistema internacional é fartamente municiado: na regulação das trocas internacionais, pelos instrumentos de defesa comercial (antidumping, medidas compensatórias e de salvaguarda); na regulação do poder econômico, pelo direito antitruste (consoante o diploma estruturador do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, a Lei 12.529/11); ou na regulação do acesso ao conhecimento, pelo sistema de proteção à propriedade intelectual (particularmente em relação à propriedade industrial, nos termos da Lei 9.279/96).

 

O direito econômico da faceta mercantilista do sistema internacional, no entanto, não obstante prosperar e ser objeto de cuidadosos esforços legislativos em outras partes do mundo, encontra-se em estado de relativa atrofia no país.

 

Compara-se, por exemplo, com os instrumentos à disposição do direito econômico dos EUA, entre outros na regulação das trocas internacionais, pelo Webb-Pomerene Act, que exime associações de exportadores norte-americanos de disposições do direito antitruste local (possibilitando a criação de verdadeiros cartéis de exportação, cujos efeitos são percebidos somente pelo mercado externo); na regulação do poder econômico, pela Emenda Exon-Florio, que organiza um mecanismo de análise prévia de aquisição de empresas domésticas por investidores estrangeiros (operacionalizado pelo Committee on Foreign Investments in the United States – CFIUS); ou na regulação do acesso ao conhecimento, pela Super 301, sessão do Omnibus Foreign Trade and Competitiveness Act que autoriza a adoção de medidas unilaterais pelo presidente dos EUA contra países que, na sua opinião, não ofereçam proteção suficiente aos direitos de propriedade intelectual de origem estadunidense.

 

Por aqui, muito pelo contrário, o leque de instrumentos de direito econômico à disposição dos nossos formuladores de políticas públicas vem sendo paulatinamente erodido.

 

Serve de exemplo a recente revogação, pela Lei 13.874/19 (a Lei de Liberdade Econômica), da Lei Delegada 4/62, nosso “Código de Combate a Crises” – talvez o instrumento de direito brasileiro que mais se assemelhava ao Defense Production Act norte-americano –, dispondo sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo, prevendo instrumentos como a compra, armazenamento e distribuição de uma série de gêneros alimentícios, medicamentos, artigos sanitários e até máquinas (art. 2º, I); o controle de preços (art. 2º, II); a desapropriação de bens ou requisição de serviços (art. 2º, III); a promoção de estímulos à produção (art. 2º, IV); ou o controle do abastecimento, mediante a regulação da circulação territorial de determinados bens, a regulação e disciplina da produção, distribuição e consumo de matérias-primas, o racionamento de bens essenciais ou a manutenção de estoques (art. 6º).

 

É diante da baixa densidade de instrumentos do direito econômico posto no país que se faz necessária a aprovação de legislações novas e sucessivas a cada crise, prejudicando a celeridade na tomada das medidas e o planejamento para a atuação tempestiva e contundente do poder público, que precisa, então, reagir afobadamente e a toque de caixa sempre que as circunstâncias impõem sua atuação.

 

As goteiras no teto não cessarão de aparecer. Se quisermos obter sucesso nessa ou nas tantas outras batalhas que se sucederão no Século XXI – a batalha pela fronteira tecnológica e pelo domínio dos setores mais dinâmicos, como a Internet das Coisas (“IoT”) e a 4ª Revolução Industrial, ou mesmo as guerras das quais não mais poderemos nos esquivar, contra a estagnação, a fome, a pobreza e a exclusão – não faz sentido que tenhamos que sair para adquirir martelos e chaves de fenda no meio de cada tempestade.

 

É fundamental que o país tenha uma caixa de ferramentas devidamente montada, que possibilite as intervenções necessárias antes que as goteiras inundem a casa.

 

Gabriel Rapoport Furtado é advogado especialista em Direito Público, Regulatório e Infraestrutura do escritório Machado Meyer.

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