O que o leilão da Cedae nos diz sobre os rumos do saneamento básico no país

A mais importante mudança na legislação é a possibilidade de que a iniciativa pública e a privada caminhem cada vez mais lado a lado/Pexels
A mais importante mudança na legislação é a possibilidade de que a iniciativa pública e a privada caminhem cada vez mais lado a lado/Pexels
Sucesso pode estimular investimentos, mas há desconfiança das intenções da iniciativa privada.
Fecha de publicación: 15/06/2021

Pouco mais de um mês se passou desde o leilão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), que arrecadou R$ 22 bilhões, mas acontecimentos posteriores já indicam que este evento será cada vez mais interpretado como de grande importância histórica, não apenas por impactar o futuro das condições de saneamento básico dos cariocas, como também a qualidade dos serviços prestados em todo o país.


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Minha previsão leva em conta que a concessão para que empresas do setor privado atuem em parte do território do Rio de Janeiro – que, dividido em quatro blocos, ainda possui um (o 3, que compreende bairros da Zona Oeste da cidade e seis municípios) carente de arremate – pode ser considerado o primeiro grande projeto desta natureza após regulamentação do novo marco regulatório do saneamento, sancionado em 2020. Não à toa, o leilão já reflete em discussões de importantes questões relacionadas à nova legislação, tanto positivas quanto negativas.

Partindo do ponto principal do novo Marco Legal do Saneamento, que é a universalização dos serviços de saneamento básico no Brasil, prevista pelo governo federal para ocorrer até 2033, é preciso salientar que, atualmente, o cenário não é nada bom. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) mostram que apenas 83,6% dos brasileiros são abastecidos por rede de água e 53,2% têm o esgoto coletado (mas somente 46% é tratado).

Em números absolutos, são 34 milhões de pessoas que vivem sem água e quase 100 milhões sem esgoto em todo o país. Com isso, os consórcios Aegea e Iguá, agora responsáveis por operar a maior parte do sistema de saneamento do Rio de Janeiro pelos próximos 35 anos, iniciam os trabalhos em um contexto extremamente favorável, na linha do famigerado “pior do que está não fica”. Afinal, é justamente neste estado que a má qualidade da água – com direito a tom amarronzado e gosto duvidoso – se tornou um fato notório desde o ano passado. 


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Esta é, então, a grande oportunidade para a iniciativa privada provar que, além dos lucros, a melhora na qualidade de vida da população, principalmente em áreas mais pobres onde o poder público falha, também norteia seus interesses. A expectativa é de que, sim, os investimentos sejam maciços, uma vez que a arrecadação de R$ 22 bilhões (somente com as concessões) superou a expectativa inicial, que era de R$ 10,6 bi, em 114%.

Vale lembrar que os três blocos arrematados correspondem a mais de 11 milhões e meio de pessoas (leia-se consumidores). O sucesso na prestação do serviço pode alavancar o interesse de investimentos por outras empresas no saneamento básico, o que facilitaria o cumprimento das metas do Marco Legal.

Por outro lado, a desconfiança de alguns setores da sociedade quanto ao compromisso da iniciativa privada com as camadas mais pobres (e com a qualidade do serviço acima dos lucros) é justificável. Sem fugir do leilão da Cedae, não dá para classificar como coincidência que o bloco 3, composto por bairros da Zona Oeste do Rio de Janeiro, sequer tenha recebido propostas – o consórcio Agea chegou a apresentar um valor, mas retirou o lance. A região é amplamente conhecida como ponto de dominação das milícias, o que dificulta a atuação das empresas.

Um levantamento do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF) aponta que, hoje, 15 bairros da Zona Oeste se encontram nesta situação. Seria leviano colocar nas costas dos consórcios a responsabilidade de resolver um problema que diz respeito à segurança pública, mas o pouco interesse na região é um sinal de que desafios mais complexos estão fora do radar deles. É aí que deve entrar outra premissa do marco legal do saneamento que é a iniciativa pública e a privada caminhando lado a lado. 

No âmbito trabalhista, outro impasse surgiu nesta semana. O Partido Democrático Trabalhista (PDT) entrou com uma ação no STF pedindo a nulidade do leilão, alegando que é necessária a apresentação de um estudo sobre o impacto socioeconômico entre trabalhadores da Cedae.

A legenda argumenta que cerca de 5 mil funcionários serão "lançados à própria sorte", ferindo os textos constitucionais que tratam da proteção do trabalhador e do princípio do pleno emprego. A não aquisição do Bloco 3 também aparece na ação, sob o argumento de que ela contraria o preceito da universalização presente no marco legal para o setor.

Nos próximos dias, todas as entidades envolvidas no processo licitatório devem se manifestar e, num futuro próximo, o assunto ficará nas mãos da Suprema Corte. Uma decisão favorável à suspensão do leilão pode gerar um efeito contrário no que tange aos interesses de empresas privadas em concessões futuras, não apenas no Rio de Janeiro, pois representaria o que elas sempre classificaram como obstáculos impostos pelo poder público.


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Em meio à incerteza, fica o desejo para que se cumpra a talvez mais importante mudança na legislação referente ao saneamento básico: a possibilidade de que a iniciativa pública e a privada caminhem cada vez mais lado a lado. Com esta abertura, a população brasileira tem muito a ganhar, porque no atual cenário que envolve a água, nosso bem mais precioso, estamos perdendo de goleada. 

*Dirceu D´Alkmin Telles é doutor em engenharia pela USP e coordenador de Projetos e de cursos da Fundação FAT

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