A inovação e a indústria de seguros no Brasil

Stakeholders precisam desenvolver a necessária “consciência de risco” e das oportunidades que um mercado de seguros pode gerar para os negócios e desenvolvimento do país/Pixabay
Stakeholders precisam desenvolver a necessária “consciência de risco” e das oportunidades que um mercado de seguros pode gerar para os negócios e desenvolvimento do país/Pixabay
Mercado mais flexível gera um ecossistema aberto e convidativo à experimentação.
Fecha de publicación: 24/03/2021

Para receber nossa newsletter diária inscreva-se aqui!

Vivemos efetivamente na “sociedade do risco”, ideia cunhada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck no seu livro “Sociedade de Risco: Rumo a uma Outra Modernidade”, publicado originalmente em 1986, segundo a qual todos estão expostos, independentemente da classe social, a perigos das mais diversas matizes e de escala global, sem limites claros de tempo e espaço. Nada mais atual!

Ainda segundo o autor, vivemos uma época de transição entre a sociedade industrial clássica, com todos os seus valores, tradições e instituições mais ou menos estanques, para uma estrutura social fluida, complexa e naturalmente muito mais arriscada, ou seja, em que cada ação ou omissão tende a gerar as mais diversas consequências queridas ou não queridas, o que os economistas costumam chamar de externalidades positivas e negativas, respectivamente.


Leia também: “A crise gera mais consciência sobre a necessidade do seguro como uma ferramenta de proteção”


Nesse cenário, a chamada “consciência de risco” ganha relevo. A consciência do risco e seu domínio e modelagem despontam como instrumentos imprescindíveis na geração de eficiência, valor e riqueza para os agentes econômicos e as nações. Consequentemente, o seguro, como mecanismo clássico de absorção, alocação e pulverização de riscos ganha papel de destaque no desenvolvimento de uma sociedade mais justa e próspera.

Estudos feitos por Felix Hufeld e outros no livro The Economics, Regulation, and Systemic Risk of Insurance Markets demonstram amplas evidências de uma correlação entre a penetração de seguros na sociedade e crescimento do PIB. Indicam, por exemplo, citando diversos autores, que, em países da OCDE, o crescimento de 1% no volume de prêmios de seguro de vida gera um aumento de 0,06% no PIB por ano, e, surpreendentemente, 1% de incremento no total de penetração de seguros gera um aumento de 4,8% no crescimento econômico por ano (versos 1,7% por ano ao se considerar, apenas, o seguro de vida).

Estágio atual do mercado de seguros no Brasil

No Brasil, o seguro está longe de cumprir o papel de alavanca e mecanismo de suporte ao desenvolvimento. Segundo dados divulgados pela Swiss Re no Relatório Sigma nº 4 - World insurance: riding out the 2020 pandemic storm, a penetração do seguro no Brasil, ou seja, a relação entre o total de prêmios e o PIB é de apenas 4,03%, frente a uma média mundial de 7,23%.

Os dados mostram que o Brasil se encontra longe de atingir o potencial ótimo de penetração de seguros na sociedade, a exemplo de países mais desenvolvidos como Reino Unido (10,3%) e França (9,21%), e mesmo frente a países em desenvolvimento como África do Sul (13,4%), Namíbia (10,44%), Taiwan (19,97%) e Coreia do Sul (10,78%).

Isso se dá por dois motivos principais: de um lado, o imobilismo da indústria, ainda marcada pelo monopólio do resseguro até 2007 e, de outro, a deficiência na cultura e educação financeiras e securitárias, que, conjugada a outros fatores (ausência de estímulo governamental, deficiência e/ou ineficiência legal e regulatória, escassa mão-de-obra especializada, altos custos administrativos e de intermediação etc.), tornaram os players nacionais e estrangeiros de certa forma avessos à inovação, bem como o próprio mercado consumidor e demais stakeholders da cadeia da indústria.

Falta no país, acima de tudo, a “consciência de risco”, utilizando-se mais uma vez a expressão de Ulrich Beck, bem como a percepção de que risco bem acessado e alocado é sinônimo de crescimento, desenvolvimento e inclusão. O que são mais eficientes, mecanismos de microsseguro que efetivamente protejam comunidades vulneráveis de infortúnios ou esquemas comunitários precários e informais de assistência, quando existentes? Não há dúvida de que as estruturas formais trazem consigo vantagens incomparáveis, especialmente no que tange à adequada captação e alocação de poupança pública, à solvabilidade do sistema, à responsabilidade legal dos agentes, dentre outras.

Nesse contexto, o Brasil está preparado para enfrentar e tirar vantagem da “sociedade do risco”, envolta em constantes e rápidas revoluções (no plural mesmo) tecnológicas, biotécnicas, climáticas, sanitárias, regulatórias e econômicas?

Inovações recentes no Brasil

Pense no absurdo, no Brasil há sempre um precedente. Quem está hoje mais atento ao movimento disruptivo da sociedade do risco e do protagonismo que o seguro pode ter para o desenvolvimento do país? O regulador.


Veja também: Aumenta a demanda de seguros de veículos “Pay Per Use” no Brasil


A Susep tem sido mesmo o grande vetor de inovação para o mercado estocomizado brasileiro nos últimos anos, impulsionando-o a pensar no contexto de um mundo fluido, ágil e desafiador, mas repleto de oportunidades, destacando-se as seguintes iniciativas por ela capitaneadas:

  1. A criação de 4 segmentos de entidades supervisionadas, com a redução dos encargos regulatórios para empresas de menor porte (Resolução CNSP n° 388/2020);
  2. Permissão para que insurtechs atuem temporariamente em ambiente regulatório simplificado, o chamado sandbox regulatório (Resolução CNSP n° 381/2020);
  3. Criação do marco regulatório para emissão de Instrumentos Ligados a Seguros – ILS (insurance linked security) e criação de resseguradores de propósito específico – RPE, colocando o Brasil, ao lado de Singapura, Londres e Bermudas como um possível hub do mercado de dívida (Resolução CNSP n° 396/2020);
  4. Permissão de seguros on-demand ou intermitentes (Circular SUSEP n° 592/2019);
  5. Permissão para que entidades de previdência complementar e operadoras de planos de saúde contratem resseguro (Resolução CNSP n° 380/2020), objeto de uma certa ação direta de inconstitucionalidade (sic);
  6. Criação de regras e princípios de ética e transparência aplicáveis aos intermediários (Resolução CNSP n° 382/2020);
  7. Criação do Sistema de Registro de Operações Resolução CNSP n° 383/2020;
  8. Definição de regras para emissão de dívida subordinada e viabilização de dívidas ordinárias, possibilitando a melhora da estrutura de capital dos entes regulados (Resolução CNSP n° 391/2020);
  9. Reformulação do marco sancionatório com foco preventivo e não punitivo (Resolução CNSP n° 393/2020);
  10. Simplificação da contratação de seguro no exterior (Circular SUSEP n° 603/2020); e
  11. Finalmente, mas não menos importante, a flexibilização e simplificação das regras de seguros patrimoniais, com o fim de produtos estandardizados e engessados (Circular SUSEP n° 620/2020).

E agora? Inovar ou inovar

Em um ambiente mais flexível e ágil, novos entrantes estão ocupando lacunas deixadas pelos incumbentes ou complementando a atuação destes. Insurtechs, fintechs, big techs, MGA (managing general agent) e TPA (third-party administrador) estão encontrando um ecossistema muito mais aberto e convidativo à experimentação, ao erro e à adaptação.

Vislumbra-se, nesse novo cenário que se desenha, uma maior aproximação dos mercados de seguros, de capitais e financeiro, com o desenvolvimento de produtos híbridos (a exemplo do ILS) que podem induzir a uma melhor alocação e pulverização de riscos, dando, portanto, maior conforto e estímulos eficientes para os investidores.

Por outro lado, os novos entrantes e certos incumbentes, mesmo aqueles que convivem com legados pesados, vêm buscando mudar o foco do seguro – usualmente um produto set it and forget it, ou seja, em que se fala com um intermediário no início do relacionamento e espera-se nunca falar com a seguradora - para o cliente, por meio de estratégias que são vencedoras em outros mercados. Para tanto, tem-se estruturado esquemas de cash back associados a redução de exposição ou sinistralidade e incentivos para redução de risco moral e seleção adversa, bem como estruturas mais sofisticadas de assistência, prevenção de riscos e interface amigável e dinâmica com o cliente.

Na outra ponta, a disrupção tecnológica tem ganhado mais corpo e impactado decisivamente a indústria de seguros. Com o desenvolvimento da internet das coisas e big data, mecanismos elegantes de acesso contínuo do risco segurável, como na hipótese de uso de braceletes que mensuram constantemente sinais vitais, bem como de parametrização de riscos e prejuízos serão utilizados com mais frequência, evitando-se a via cruzes do cliente esquecido que, mesmo vulnerabilizado pelo sinistro, é obrigado a prová-lo, demonstrar cobertura e o prejuízo indenizável, bem como discutir depreciação, cláusula de rateio e concorrência de apólices, etc. (ufa!).

Além disso, seguindo a trilha do open banking, o open insurance, que está na agenda regulatória da SUSEP e do Banco Central neste ano, tornará o ambiente mais democrático, deslocando-se o poder de decisão e escolha para as mãos do cliente, a quem será permitido “leiloar” o seu risco, o que poderá eventualmente ocorrer, em um futuro próximo, em um ecossistema peer-to-peer ainda mais democrático, via blockchain.

Tudo isso está levando a uma desintermediação da cadeia de seguros, ou melhor, a uma intermediação transparente, mais útil e nichada, que efetivamente traga valor ao cliente final, especialmente em um cenário de escolhas quase que infinitas, diante da total flexibilização dos produtos securitários levada a cabo pela SUSEP. O intermediário, portanto, deve se posicionar nesse novo mercado como um grande curador e incentivador de possibilidades criativas, a exemplo das plataformas de varejo e distribuição.


Leia também: São seguros os contratos por aplicativos?


Pois bem. O regulador, apesar de alguns poucos e escusáveis percalços no caminho, está fazendo a parte dele ao criar o ambiente para a inovação no mercado de seguros no Brasil. Novos entrantes estão aos poucos se beneficiando disso e os incumbentes, com a sua tradição e histórico de análise de risco e balanços confiáveis, têm muito a ganhar com isso tudo, mas, antes, todos os stakeholders precisam desenvolver a necessária “consciência de risco” e das oportunidades que um mercado de seguros ágil, confiável e inovador pode gerar para os negócios e o desenvolvimento do país.

*Cassio Amaral é sócio do Mattos Filho.

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.