Tristes Trópicos: FED expansionista e Banco Central do Brasil contracionista

Falta de retidão fiscal no nosso país chegou a níveis escandalosos/Pixabay
Falta de retidão fiscal no nosso país chegou a níveis escandalosos/Pixabay
Brasil ainda sofre com erros do passado, que volta e meia acabam nos alertando sobre a nossa condição de emergente.
Fecha de publicación: 03/05/2021

Como explicar para um estudante iniciante no curso de economia que apesar dos EUA estarem em voo de cruzeiro, alcançando crescimento econômico estilo “chinês” de 6.4% no primeiro trimestre do ano, a autoridade monetária deles, o FED, acabou de anunciar (em 27 de abril) que não irá subir juros em um futuro próximo e muito menos parar com a emissão monetária de US$120 bilhões mensais?

Ou como disse, o chairman do FED – Jerome Powell – “não é hora de termos essa conversa”. Enquanto isso, abaixo da linha do Equador, vemos um país com relativo atraso na vacinação contra a Covid-19, esperando crescer 3.2%, o que basicamente seria um crescimento nulo, se desconsiderarmos a herança estatística em relação ao ano de 2020, com expectativa de aumentar seu juro básico em 0,75%, saindo de 2.75% para 3.5% a taxa SELIC. Por quê? 

Bem, poderíamos fugir da explicação simplesmente dizendo e resumindo o que já abemos: Eles podem! Mas convém darmos mais detalhes técnicos sobre essa discrepância na atuação da política monetária entre Brasil e EUA. 


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Apesar de nossas belas praias, miscigenação de culturas e credos, o Brasil ainda padece de algumas características e sofre com erros do passado, que volta e meia acabam nos alertando sobre a nossa condição de emergente: 

  1. O Brasil é um enorme exportador de commodities agrícolas, metálicas e energéticas. Graças ao crescimento da China e dos EUA, a demanda por essas commodities continua forte (obrigado!) levando seus preços a atingirem novos recordes. Maiores preços lá fora, se a empresa deseja, pois assim deve ser, maximizar o lucro de seu acionista majoritário e/ou minoritário, deverá cobrar o mesmo preço em US Dólar aqui dentro. Daí a pressão inflacionária vinda do preço das commodities; 
  2. É impossível esquecer uma inflação de 12 trilhões percentuais que castigou os brasileiros de 1980 a 1994. Graças ao descontrole monetário para financiar crescentes déficits fiscais, dentre outros problemas, como as maxi-depreciações cambiais de 1979 e 1983, o nosso país ainda não teve sua memória inflacionária completamente apagada. Em que pese a credibilidade existente e conferida ao atual corpo diretivo do Banco Central, cuidar de um alcoólatra requer a lembrança de nunca esquecer o que se passa na cabeça de um dependente químico, após um primeiro gole destruidor; 
  3. A falta de retidão fiscal ainda imperiosa no nosso país chegou a níveis escandalosos. Não porque gastaremos mais do que podemos, mas porque “colocamos” na Constituição a possibilidade de esfarelarmos o “teto de gastos”. Um dos nossos compromissos fiscais! Mesmo com analistas “Poliana Brasilis” dizendo que houve um alívio fiscal, é preciso acreditar demais em Saci-Pererê e Curupira para realmente acreditarmos que houve algum alívio fiscal com a aprovação do orçamento de 2021. Só pode ser brincadeira de gosto duvidoso e bem assustadora; 
  4. Graças ao nosso relacionamento promíscuo com as contas públicas, o Brasil não tem aproveitado como deveria, ou como aproveitamos, o boom de commodities de 2005 a 2007, levando a nossa moeda a apreciar e dando uma folga para as expectativas inflacionárias. Pelo contrário, nos últimos 12 meses o Real brasileiro tem tido um desemprenho pior até do que a Lira turca, país em crise cambial e econômica. Com essa resistência a apreciação de nossa moeda, graças ao risco fiscal e aliado a um aumento no preço das commodities no mercado internacional, fechamos a conta da explicação do aumento dos preços domésticos convertido em Reais das principais commodities; 
  5. Mesmo enaltecendo as vicissitudes acadêmicas e profissionais dos diretores do Banco Central, o Bacen, há de se admitir que manter a taxa de juro (Selic) em 2% por um longo período, sem analisar a situação política do país, como o negacionismo reinante quanto à doença, as impossibilidades óbvias de se implementar uma agenda liberal como defendida no início de 2019 e a miopia política quanto a não inclusão do “centrão” nas decisões econômicas, pareceu um pouco ingênuo, principalmente em anos que antecedem reeleições presidenciais. Colhe-se, portanto, um Congresso reinante, um corpo Executivo refém e aprovações de emendas parlamentares com a toga de “preocupação com a saúde do povo”; 
  6. Tudo junto e misturado, o caldo acaba batendo quente nas expectativas inflacionárias. Para uma meta de inflação de 3.75% para esse ano, com +- 1.5% de flutuação permitida, o último relatório Focus continua mostrando uma deterioração nas expectativas inflacionárias dos analistas, culminando com uma piora nas expectativas inflacionárias para 2021 de 5,01% e 2022 de 3,67% para uma meta de 3,5%;
  7. Se assumirmos um juro real neutro de 3% ao ano, para uma meta inflacionária de 3,5% em 2022, então a trajetória que o Bacen deveria perseguir seria uma taxa básica de juro de pelo menos 6,5% ao ano. Poderíamos esperar novos aumentos de 0,75% na reunião do Copom agora em maio (elevando a taxa Selic de 2,75% para 3,5%), mais 0,75% em junho (4,25%), 0,50%  em agosto (4,50%), 0,50%  em setembro (5,0%) e 0,50%  em outubro (5,5%). A reunião de dezembro decidiria se a ancoragem das expectativas inflacionárias dos agentes econômicos foi conquistada ou se novos aumentos seriam necessários. 

Pausa para respirar. Você, leitor, leu com carinho e atenção o que foi escrito? Como pode um país que ainda apresenta uma curva não estabilizada de mortes por Covid-19, um aumento no número de desempregados e desalentados, crescimento econômico nulo esperado para 2021, um dos maiores exportadores de commodities metálicas, agrícolas e energéticas do mundo, sendo um dos únicos, juntamente com a Turquia, Argentina e Rússia ter de subir juros nesse cenário sombrio? Pois é. Comece pelo item 1 novamente. Tristes trópicos. 

*Roberto Dumas é economista e professor no Insper.


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