Elas existem, já estão no braço de pelo menos 31 milhões de pessoas no Brasil – ao menos uma em cada sete já recebeu a primeira dose das vacinas contra a Covid-19. O problema é que tal imunizante, assim como todos os seus insumos, são disputados ferrenhamente por nações ao redor do globo, que pagam por bens escassos até o momento. Se países em desenvolvimento como Brasil, Índia e México estão com dificuldade em receber o volume contratado de doses, países menores e sem capacidade de competição podem sofrer ainda mais com uma pandemia que segue longe do seu fim.
Por isso, surpreendeu o movimento do presidente do Estados Unidos, Joe Biden, de apoiar a suspensão das patentes de vacinas contra a doença. Nesta quarta-feira (5), o gabinete de Biden justificou a decisão de apoiar o pleito de quebra de patentes como uma maneira de expandir a produção de doses – uma vez que o país já garantiu suas doses e caminha para vacinar a maior parte da população. "Esta é uma crise de saúde global, e as circunstâncias extraordinárias da Covid-19 pedem por medidas extraordinárias", escreveu a representante de Comércio dos EUA, Katherine Tai.
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O pleito que Washington passará a defender na OMC (Organização Mundial do Comércio) já é defendido por outros países, como a Índia e a África do Sul. O Brasil possui um parque fabril para a produção de algumas das vacinas disponíveis no mercado, mas até o momento se posiciona contra a quebra de patentes das vacinas.
A ação norte-americana, no entanto, já gerou efeitos no comportamento brasileiro: nesta quinta-feira (6), em audiência à Comissão de Relações Exteriores do Senado, o chanceler Carlos Alberto França indicou que pode alterar este posicionamento. "Temos o direito de mudar de opinião", disse aos parlamentares.
No Legislativo brasileiro, a pressão pela quebra de patentes já existe. Em 29 de abril, o próprio Senado aprovou um projeto de Lei que permite a quebra temporária das patentes. Por 55 votos favoráveis a 19 contrários, os parlamentares aprovaram um projeto que dispensa o Brasil de cumprir o chamado Trips (sigla em inglês para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) da OMC. O texto, que vai agora para a Câmara, trata do mesmo acordo que o governo de Joe Biden planeja apoiar.
O decreto de 1994 que orienta o Trips no Brasil indica que tais suspensões podem ocorrer “em caso de emergência nacional”, “circunstâncias de extrema urgência” ou “casos de uso público não-comercial”, recorda o sócio de RMS Advogados e conselheiro federal da OAB, Wilson Sales Belchior. Estas características poderiam ser a pandemia de hoje. "Estado-membro deverá garantir que esse uso será restrito a objetivo determinado, não-exclusivo, intransferível e limitado ao mercado interno do referido Estado-membro. Além disso, o titular da patente deverá ser adequadamente remunerado, cabendo recurso da decisão que fixar a importância relativa às circunstâncias de cada uso", explicou.
Para a professora de Direito Internacional e Comparado da USP, Maristela Basso, o texto aprovado pelo Senado tanto serve como arma de pressão política como facilita o processo de licenciamento compulsório. "Contudo, o tiro pode ser no próprio pé", adverte, "porque a indústria que pesquisa, inventa e desenvolve pode deixar o país e ir para outro, em que o marco regulatório de propriedade intelectual seja mais seguro."
Mesmo se adotada, a medida de quebra de patentes não tem efeitos imediatos e não se reflete em mais vacinas imediatamente nas geladeiras de postos de saúde no mundo todo.
Um dos efeitos práticos foi apontado pelo ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão: em entrevista na semana passada, Temporão disse que o licenciamento poderia gerar um aumento da produção, mas o resultado final seria uma nova vacina – que teria de passar por novos testes e validações pelas agências sanitárias. Temporão, que comandou a pasta entre 2007 e 2011 e foi ele próprio responsável por quebrar patentes de medicamentos contra a AIDS, considera importante que o Brasil apoie a quebra de patentes.
Para Saulo Stafanone Alle, que é especialista em direito internacional e constitucional do Peixoto & Cury Advogados, a humanidade atravessa um dilema: "Qualquer desenvolvimento científico e tecnológico só se realiza se houver investimentos. O investimento público é limitado e punir o investimento privado pode trazer efeitos negativos a médio e longo prazos. Por outro lado, uma descoberta como essa de vacina, por exemplo, representa um grande poder, que precisa ser colocado a serviço da dignidade humana", disse.
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Para o advogado, o movimento em prol da quebra de patentes sugere "que esse é um assunto fundamental e que precisa ser tratado agora, porque vivemos o problema, mas que também precisa ser desenvolvido com maior sofisticação para o futuro."
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