Após chacinas, STF fixa regras para operações em favelas

Ainda em 2020, Edson Fachin havia proibido operações em comunidades cariocas durante a pandemia sem estrita necessidade e aviso ao Ministério Público/PMERJ
Ainda em 2020, Edson Fachin havia proibido operações em comunidades cariocas durante a pandemia sem estrita necessidade e aviso ao Ministério Público/PMERJ
Governo carioca terá que apresentar plano com novas diretrizes em 90 dias. 
Fecha de publicación: 04/02/2022

O STF (Supremo Tribunal Federal) concluiu nesta quinta-feira (3) o julgamento de um mandado de segurança na ADPF 635, que trata das operações policiais em favelas do Rio de Janeiro. A demora da Suprema Corte em analisar o tema ocorre em um momento onde áreas de baixa renda da capital fluminense continuam sendo alvo de operações das polícias civil e militar - mesmo após ordem expressa do STF restringindo este tipo de ação. Algumas delas resultam em chacinas com a morte de civis, em sua maioria pobres, pretos, desarmados e sem antecedentes criminais.

A votação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental começou em maio do ano passado, sendo suspensa para vista e durante o recesso do final de ano. 


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Os ministros não apresentaram uma corrente de voto única, mas formaram maioria, ainda na quarta-feira (2), para definir uma série de regras a serem adotadas pelo governo do estado do Rio de Janeiro: o estado deve elaborar e enviar ao STF, no prazo máximo de 90 dias, um plano para reduzir a letalidade policial e controlar violações de direitos humanos pelas forças de segurança. Também deve ser criado um observatório judicial sobre polícia cidadã, com membros do governo, judiciário e sociedade civil.

Ainda estão nas propostas dar prioridade a investigações envolvendo crianças e adolescentes; a execução de diligências apenas durante o dia, mediante justificativa; disponibilização de ambulâncias para operações onde possam existir confrontos armados  e garantia de proporcionalidade no uso da força letal pela polícia durante suas incursões.

A ação, movida pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) contra o estado do Rio de Janeiro, teve decisões importantes desde que foi apresentada, no final de 2019. O ministro Edson Fachin, que é relator do caso, tomou a decisão mais representativa sobre a ADPF em junho do ano passado.

Na ocasião ele ordenou, “sob pena de responsabilização civil e criminal, [que] não se realizem operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a epidemia do Covid-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro”.


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O fato de a maior parte da Corte ter referendado a decisão parece não ter alterado a ação policial na segunda maior região metropolitana do Brasil. Na verdade, de acordo com o Instituto Fogo Cruzado, que compila tais dados, foram registradas 60 chacinas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro entre a liminar de Fachin e o mês de novembro do ano passado e 254 pessoas acabaram mortas.

No dia em que o julgamento foi concluído pela Suprema Corte, uma operação da Polícia Militar em Belford Roxo, na região metropolitana do Rio, matou sete pessoas suspeitas de integrar o tráfico de drogas na região.

O caso mais grave ocorreu em uma quinta-feira, 6 de maio: uma ação da Polícia Civil na comunidade do Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro, causou a morte de 29 pessoas. 

Apesar do argumento da corporação de que os policiais agiram em legítima defesa, apenas um dos mortos era policial, sendo que os restantes eram civis mortos com tiros à queima-roupa e nas costas, indicando nenhuma chance de defesa. A ação teria ocorrido como vingança dos policiais à morte do companheiro de farda, ocorrida no dia anterior.

Toda a atenção internacional que a chacina de Jacarezinho trouxe não impediu que novas chacinas ocorressem: só em novembro de 2021 três foram registradas pelo Instituto Fogo Cruzado. Em duas delas, houve a ação policial - e uma específica, no município de São Gonçalo, voltou a chamar atenção nacional: no dia 22 de novembro 14 corpos foram retirados de um manguezal na comunidade do Salgueiro. As mortes de civis teriam sido resposta - novamente - à morte de um policial militar um dia antes.

O início do julgamento, em maio, contou com o pedido de vista de Alexandre de Moraes. “A demora na análise pelo STF custa vidas, saúde e direitos a moradores de periferias e favelas do Rio de Janeiro”, afirma Cecília Olliveira, que idealizou o projeto Fogo Cruzado, lembrando que a própria cautelar da ADPF veio depois da morte de João Pedro, um garoto de de 14 anos assassinado durante uma operação das polícias civil e federal no mesmo Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo.

“O corpo de João foi levado de casa pelos policiais e só foi localizado pelos familiares horas depois, já no Instituto Médico Legal”, relembra Cecília. “A morte e o descuido com a família que buscava desesperadamente notícias de João fez com o Ministério Público Federal, que tem entre suas prerrogativas o controle externo da atividade policial, solicitar ao diretor-geral da PF que a corporação só realizasse operações urgentes durante a pandemia que considerassem nos planejamentos operacionais, as vulnerabilidades sociais das localidades e o provável adensamento populacional resultante da quarentena”.


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Cecília diz que as medidas previstas na decisão da Suprema Corte não são suficientes, apesar da diminuição dos indicadores: o número de operações policiais caiu 38% e o de mortos diminuiu 35% nas 21 cidades da região metropolitana do Rio que são monitoradas pelo Instituto Fogo Cruzado. Durante ações e operações policiais, o número de crianças baleadas abarcadas pela validade da ADPF foi 69% menor e o de adolescentes caiu pela metade. “Os índices de violência armada caíram porque a polícia atuou menos, não porque houve mudança no modus operandi das forças policiais”, ressalta. 

O descumprimento da ADPF tem a ver com o nível de autonomia das polícias brasileiras e, em especial, as forças cariocas, defende o presidente da comissão de segurança pública da OAB do Rio de Janeiro, Rafael Borges. “Elas funcionam como agências políticas autônomas. Atuam sem subordinação, independentemente de comando dos agentes políticos que têm legitimidade democrática para determinar o desenho da política de segurança- elas fazem o que elas querem”, resume o advogado.

A decisão do STF, indica Rafael, é correta, mas “anômala” - já que em sua visão a Corte não deve tratar destes assuntos e só intervém porque foi provocado. “O Supremo chegou a este extremo porque as coisas no Rio de Janeiro estão completamente  fora do controle - e estão fora do controle mesmo na pandemia”, adverte o representante. “A pandemia começou e  a polícia carioca não deu sinais que mudaria essa política sanguinolenta, de matança generalizada nas áreas periféricas. É nessa ação que o Supremo entra para por um freio.”

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