Quando entrou no escritório Serur como estagiário em 2010, Felipe Caon preferiu não revelar sua orientação sexual. O então estudante de direito de Recife, em Pernambuco, tinha medo de dizer que era gay e perder oportunidades na carreira.
Mas o que parecia um obstáculo acabou virando uma oportunidade. O escritório Serur, um dos cinco grandes da região nordeste, entendeu antes de muitas outras firmas por lá que a diversidade, além de ser uma questão ética importante, pode ser um excelente negócio, tanto para os empregados, quanto para a empresa de advocacia.
Felipe foi efetivado no escritório em 2012, virou especialista na área de Contencioso Estratégico em São Paulo, até finalmente se tornar sócio em 2017. Entre os 11 sócios da firma, ele é o coordenador da Comitê Serur + Diversidade. Como parte da estratégia, no ano passado, a empresa realizou o 1º Fórum Serur Diversidade, com um ciclo de palestras em Recife, para discutir a inclusão e os direitos das pessoas LGBTQI+.
Entre os temas analisados, está a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de enquadrar a homofobia e a transfobia como crime de racismo. O julgamento aconteceu em junho de 2019 e o STF entendeu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia. Os ministros votaram pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria.
O Comitê Serur + Diversidade trabalha na defesa da diversidade e no combate à discriminação dentro e fora do escritório, como a realização das campanhas da visibilidade lésbica, da consciência negra, da sororidade, de testes de HIV e o lançamento de uma ouvidoria.
”É uma questão de responsabilidade social. Isso é uma pauta relevante e expressiva. Assim, criamos mecanismos para combater atos contrários à diversidade, para que nossos colaboradores fiquem à vontade”, afirma Felipe Caon.
Além da questão ética, empresas que investem em diversidade têm mais chance de se sobressair no mercado. Uma pesquisa realizada pela consultoria McKinsey & Company mostrou que as empresas com diversidade étnica têm 33% mais chance de sucesso. E as com diversidade de gênero são 21% mais lucrativas.
Para os responsáveis pela pesquisa, as empresas com ações voltadas para a diversidade atraem melhores profissionais, em busca de condições de trabalho mais igualitárias. E, consequentemente, os funcionários trabalham melhor porque estão mais satisfeitos.
E essa não é uma política isolada dos escritórios. Ela veio para ficar no mundo legal. Muitas firmas têm incentivado a criação de grupos de diversidade de gênero, raça e orientação sexual.
Mas com a nova política, veio o adeus às piadinhas. Estes comitês são realidade há tempo em muitas empresas multinacionais e também em vários escritórios. Nesses lugares, o profissional que for pego fazendo piadas sobre homossexuais, por exemplo, pode ser denunciado e passar por um processo chamado de compliance. Quando é comprovado o ato discriminatório, o colaborador geralmente é demitido.
A mudança de atitude das empresas, porém, ainda está longe de ser uma unanimidade nos escritórios de advocacia, segundo os especialistas.
“O mundo jurídico é extremamente homofóbico. Em várias ocasiões, estando na condição de declaradamente gay ou não, eu já presenciei piadas e comentários discriminatórios. E isso é constrangedor, porque faz com que o profissional LGBTQIA+ se sinta desprotegido, acuado, com medo de se revelar gay”, afirma Caon.
Para os especialistas, muitos sabem que se forem apontados como gays podem ser prejudicados e até despedidos das empresas de advocacia.
Um dos maiores escritórios brasileiros, o Pinheiro Neto, também tem toda uma divisão que pensa a diversidade.
De acordo com o sócio Júlio César Bueno, um dos coordenadores da Comissão de Diversidade e Inclusão, a questão é bem mais ampla, e passa pela equidade racial, liberdade religiosa, gênero, condição de deficiência e vai além, falando da diversidade na periferia, lugar de fala, direito antidiscriminatório e aspecto psicanalítico do preconceito.
“Estabelecemos políticas de inclusão, garantindo que as pessoas possam viver como bem entendem, inserindo sua vida no ambiente de trabalho. Não dá mais pra viver num mundo em que você deixa sua vida fora do escritório”, explica.
Uma das iniciativas do escritório para a comunidade LGBTQIA+ foi permitir que os parceiros em relações homoafetivas tenham direito ao plano de saúde, mesmo quando a união estável não é oficializada.
Outra iniciativa recentemente criada foi o grupo LGBTeam, que já tem 160 funcionários e se propõe a ser um fórum de debate para promover ações efetivas relacionadas à valorização da diversidade sexual. “Nem todos fazem parte da comunidade, são aliados que se sentiram à vontade para participar”, diz.
Tradicionalmente no dia 17 de maio, quando é celebrado o Dia Internacional de Combate à Homofobia, o escritório com sede em São Paulo estende uma imensa bandeira que representa o orgulho e reconhecimento à comunidade gay.
E em relação à diversidade de raça? Apesar de a maioria da população brasileira ser de negros e pardos, de acordo com o IBGE, eles ainda são poucos nos escritórios. O problema, para os sócios das empresas legais, é a falta de currículos para serviços altamente especializados.
“Os currículos que eventualmente aparecem acabam sendo preponderantemente de pessoas da raça branca. Recebemos pouco material de pessoas da raça negra“, afirma Eduardo Natal, sócio da Natal Manssur.
Pensando nesse mercado, a especialista em carreira Patrícia Santos criou uma consultoria de recursos humanos chamada EmpregueAfro lá em 2004. A intenção é capacitar jovens negros para processos seletivos de grandes multinacionais. Porém, com o tempo, essas empresas começaram a pedir serviços de recrutamento e seleção, treinamentos e workshops sobre a temática.
Hoje, a consultoria tenta diminuir esse gap e ajudar talentos a encontrar a melhor colocação no mercado de trabalho. Para ela, a dificuldade enfrentada por advogados afrodescendentes passa pela cultura jurídica e a forma de trabalhar a diversidade étnico-racial.
"Os escritórios de advocacia recebem poucos currículos porque as pessoas negras não se vêem neles, acham que não é para elas. As empresas precisam se abrir para a diversidade e flexibilizar alguns filtros para que as pessoas possam se entender e se sentir parte desse lugar", afirma Santos.
"De 2005 pra cá tivemos uma entrada muito forte de estudantes negros nas universidades, principalmente as públicas. Por meio do programa de cotas, entraram mais de 150 mil alunos negros em todo Brasil. Não é um número comparável a 800 mil brancos, mas tem pessoas negras no mercado", diz.
Outras mudanças percebidas nos últimos anos são ações e discussões voltadas à equidade de gênero e ao empoderamento feminino. Em 2016, Maís Moreno, sócia do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques, ajudou a criar o Comitê Manesco Mulher, que discute atos discriminatórios que até então passavam despercebidos ou eram naturalizados, entendidos como algo normal pelo fato da profissional ser mulher.
“Existe uma preponderância de homens em cargos de comando, nos conselhos diretivos, na administração, no corpo de gerência. Então as decisões são tomadas a partir da ótica masculina”, diz Maís.
Na visão do comitê, existem dificuldades no dia a dia da profissão. “É muito comum você encontrar problemas como a interrupção da sua fala (o man interrupting), homens tentando explicar o que você está querendo dizer, homens se apropriando de ideias que as mulheres tiveram”, afirma Maís.
Outro problema apontado são os homens que não confiam nas mulheres para desempenho de funções que seriam originalmente identificadas como masculinas: soluções complexas, responsabilidades que exijam energia mais intensa, o que, segundo elas, acaba sendo tolhido das mulheres.
“Estamos entendendo que é preciso se posicionar: falar sobre o problema e não deixar passar. E isso está, inclusive, mudando o comportamento dos próprios homens, que chegam a intervir quando um cliente toma alguma atitude machista”, explica.
Mas a mudança de mentalidade ainda não afastou casos mais extremos, como o assédio moral e sexual.
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