“Os advogados se sentem incomodados com a tecnologia, mas isso não faz muito sentido porque a tecnologia sempre estará presente”, explica Xavier Careaga, advogado especialista em direito tecnológico, que durante 6 anos atuou como Associate General Counsel Litigation & Regulatory Spanish LATAM na META.
Desde antes da criação da imprensa, em 1450, por Johannes Gutenberg, passando pela invenção do rádio, em 1897, até os primórdios da Internet, em meados do século passado, a tecnologia sempre esteve exposta a controvérsias. Embora seu principal motivo seja oferecer benefícios ao ser humano, é comum que haja ressalvas quanto ao surgimento de novos sistemas que venham a alterar a dinâmica tradicional.
A LexLatin conversou com Xavier Careaga para fazer um tour — desde sua trajetória profissional — sobre como, quando e em que circunstâncias devem ser publicados os marcos regulatórios, considerando que o espectro tecnológico-digital é global. Como pode funcionar uma regra que se aplica apenas a um território? E quais são os principais desafios para as empresas de tecnologia, e como devem enfrentá-los?
Evolução
Como você descreveria a evolução do direito da tecnologia?
Comecei a me interessar por direito tecnológico quando ainda cursava a graduação. Talvez por influência do meu pai, que é consultor financeiro em empresas de tecnologia, e sempre se perguntou ― como uma queixa ― por que não existem advogados que entendam de tecnologia?
E é verdade. Os advogados, em geral, se sentem desconfortáveis com a tecnologia, não a entendem e até a evitam. Para mim, isso não faz sentido porque se há uma constante é que a tecnologia sempre estará presente, mesmo que em grau mínimo.
A partir desse momento, na minha graduação comecei a me especializar progressivamente em direito tecnológico. Um dos primeiros marcos da minha carreira foi quando ingressei na Baker & McKenzie sob a orientação de Sergio Legorreta, que na época era sócio do escritório focado em Direito de tecnologia e empreendimentos, e Carlos Vela, que hoje é Diretor de Prática de Tecnologia, Mídia e Telecomunicações da B&M.
Eles tinham grandes empresas de tecnologia como clientes. E para um advogado em início de carreira profissional, foi como a realização de um sonho mergulhar totalmente no setor. Eles me desafiaram, me incentivaram a investigar e confiaram em meu julgamento, apesar da pouca informação disponível na época.
Outro marco, sem dúvida, foi fazer parte do META (antigo Facebook) e atuar na equipe de contencioso e regulatório para a América Latina. Meu grupo de trabalho naqueles anos era formado por Mila Vio, então diretora regional e minha gerente, e atualmente sócia da 3C LAW Corrêa, Camps & Conforti Advogados; e depois com Diego Spinola, atual diretor regional, Marco Rizzo, meu gestor direto e José Escalante, meu companheiro de batalha. Todos eles foram uma influência imensamente positiva na minha passagem pela META.
Leia também: Victor Fonseca: “O direito sempre foi impactado pela tecnologia”
Como resolviam dúvidas ou se preparavam para litígios desses clientes de setores envolvidos com tecnologia?
É uma questão que ainda é muito atual. Muitas vezes recebo comentários como "a lei não diz nada". E minha resposta é “a lei não vai dizer nada no futuro previsível” porque a tecnologia certamente avança muito mais rápido que a lei.
Perde-se de vista que as leis são apenas uma pequena parte dentro do grande universo que é o direito. A lei é um instrumento jurídico, mas não é o único. Existem outras ferramentas que não costumam ser aprofundadas, como as analogias. Por exemplo, o rádio foi criado 100 anos antes da Internet e, mesmo assim, paralelos muito interessantes podem ser traçados entre as duas tecnologias.
Outras ferramentas são o direito comparado (normas positivas e jurisprudência) e as práticas da indústria (definição padrão).
Por exemplo, "https:www" é um padrão desenvolvido por engenheiros para criar uma linguagem comum para comunicação global. E, embora cada país tenha suas próprias leis, é difícil para um regulador buscar mudar esse padrão. Então, essa arquitetura própria que a Internet tem é muito relevante na hora de tomar decisões jurídicas.
Diante da tecnologia global, a autorregulação
Como é possível abordar as múltiplas jurisdições que abrangem a Internet em empresas como a META?
Se você imaginar diferentes jurisdições (os 195 países) diante de uma empresa que busca prestar um serviço global, percebe que o negócio não é escalável. Qualquer empresa que queira ser global e se dedicar à produção de conteúdo na Internet tem que traçar um limite, mas onde está esse limite? É muito difícil traçá-lo.
Empresas como a META têm procurado conselhos de grupos de especialistas (juristas, ONGs, acadêmicos) para chegar a um consenso e, assim, definir padrões; no nosso caso, padrões comunitários.
Por outro lado, a META criou o Oversight Board, uma espécie de governança externa e independente para analisar os casos e avaliar se as normas da comunidade sobre moderação de conteúdo foram aplicadas corretamente.
O Oversight Board é composto por um grupo culturalmente diverso de especialistas, abrangendo todas as regiões do mundo.
Cada região tem suas especificidades quanto aos temas sensíveis em termos de conteúdo. Por exemplo, no mundo islâmico, a blasfêmia é um assunto delicado. O mesmo acontece na Europa com questões relacionadas ao terrorismo.
O Oversight Board é de natureza muito sui generis e todas as suas decisões são vinculativas para a META.
Em relação às regras da comunidade, para onde aponta o caminho legal na moderação de conteúdo?
A moderação de conteúdo é um dos tópicos mais desafiadores atualmente. A META estabelece as regras de como deseja que seus usuários se comportem, mas essas regras são contratuais.
A META não pode determinar se um conteúdo viola algum direito porque esse trabalho compete aos juízes. O que a META pode fazer é um enforcement das suas próprias regras e colaborar com as autoridades judiciais ou administrativas no cumprimento da lei.
Por exemplo, em termos de privacidade de dados, a META reforça sistematicamente as suas políticas de privacidade com novas iniciativas. Em janeiro de 2023, a empresa lançou sua terceira atualização de progresso de privacidade, que demonstra os aprimoramentos técnicos e operacionais mais recentes. Este ano, incluiu detalhes sobre governança de privacidade, controles de privacidade para indivíduos e soluções inovadoras, como infraestrutura de privacidade.
Além disso, o Centro de Privacidade foi lançado para que as pessoas possam aprender mais sobre a abordagem da META à privacidade de seus aplicativos e tecnologias.
Em novembro de 2022, a empresa introduziu as atualizações do Facebook e do Instagram para proteger ainda mais os adolescentes online.
Sugestão: Uso de inteligência artificial em escritórios de advocacia: adaptar-se para sobreviver
Feudalização da Internet
É possível correr o risco de superregulamentação na área de tecnologia?
O risco é pensar que a única forma de regular é por meio do governo.
O objetivo de um regulamento é mudar o comportamento das pessoas. Por exemplo, para fazer com que as pessoas parem de fumar, não basta promulgar uma lei que proíba de fazê-lo em determinados espaços. Você também pode fazer campanhas de conscientização ou criar uma política de não fumar em prédios de escritórios.
O problema é que, quando se trata de regular coisas novas, não se sabe qual é a combinação de elementos que pode ter sucesso em mudar o comportamento das pessoas na direção desejada. Essa ignorância pode levar ao excesso de regulamentação.
No caso da Internet, para citar uma tecnologia, não foi possível entender seu alcance global. Estados que dizem 'o que rege aqui é a minha lei' não estão levando em conta que a Internet não tem fronteiras físicas. Nesse momento, ocorre uma 'feudalização da Internet'.
Em outras palavras, o que você busca na Internet dependerá, em grande parte, da jurisdição em que você se encontra. Isso contraria a promessa da Internet: não importa onde você esteja, você pode ter acesso ao conhecimento de toda a humanidade.
Panorama da região
Quais são os sucessos e desafios que você vê na América Latina em termos de regulação tecnológica?
A América Latina tem muitos desafios, mas também tem aspectos positivos. Temos uma vantagem linguística, que nos permite trocar ideias com mais fluência do que outras regiões como Europa e Ásia.
A América Latina segue principalmente a Europa em questões de regulamentação de tecnologia. Mas o problema não é copiar e sim entender que, para a Europa chegar lá, passou por várias discussões. O erro é tentar implementar uma regulamentação sem saber como ela foi alcançada e, posteriormente, essa regulamentação não ecoar em seu próprio ordenamento jurídico e em seu próprio ecossistema de empresas de tecnologia.
Como os advogados da região podem agregar valor a uma solução?
Estamos em um momento em que a Internet, como outras tecnologias, afeta todos os ramos jurídicos. Hoje, até mesmo o direito de família foi impactado pelos avanços tecnológicos.
Então, já é imperativo que todos os advogados, não importa o que façam, tenham uma relação profunda com a tecnologia.
É isso que está faltando. Quer os advogados trabalhem no setor privado, quer no setor público ou acadêmico, todos precisam entender pelo menos um mínimo sobre como a tecnologia funciona e como ela afeta seu papel como juristas.
A tecnologia não substitui pessoas, mas funções ineficientes. E, aos poucos, os advogados que conseguirem essa relação com a tecnologia vão substituir os que ficaram de fora.
Add new comment