Quem nunca ouviu o pensamento: “Um artista nunca morre enquanto a sua obra continuar viva"? Dizer adeus é um desafio inexorável. E quando se trata de despedir-se de um artista, é como se o luto assumisse uma dupla dimensão: a do árduo desapego sob a perspectiva da presença física e também pela implícita sensação de separação da arte que estava por vir. Porém, se por um lado a criação vindoura que não se materializou causa o lamento do que poderia ter sido, o legado da arte deixada traz um imenso alívio diante da sua inerente eternidade.
A Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei nº 9610/98) conceitua, em seu artigo 7º, que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte...”. Nesse dispositivo, o legislador já aponta: sim, a arte se cria a partir da alma é etérea. Mas só será considerada uma obra artística passível de proteção para o direito autoral aquilo que for exteriorizado, o que se tornar materializado. E aqui é importante entender que, quando mencionamos “materializado”, não necessariamente estamos nos referindo a algo palpável ou que existe fisicamente.
A base na qual uma criação é expressa e se torna uma obra protegida, pode ser, por exemplo, um suporte digital. Basta lembrarmos de uma música. É uma obra musical. Quando exteriorizada, torna-se uma obra protegida pelo direito. Mas nunca vamos tocar ou pegar com as nossas mãos uma música. Embora algumas canções nos remetam à sensação de um abraço, considerar uma obra musical como algo concreto é, na realidade, uma abstração jurídica.
Para regulamentar a vida em sociedade, o ordenamento jurídico acaba por nomear abstratamente alguns conceitos e situações da vida real, no intuito de fazer com que esse acontecimento consiga ser categorizado e encaixado nesse ordenamento. É nesse sentido que a Lei de Direitos Autorais, em seu artigo 3º, determina que “os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis”. Ou seja, os direitos que um titular detém sobre determinada obra artística equivalem a um bem móvel e, como tal, compõem o patrimônio de uma pessoa que, depois de seu falecimento, integrará o monte partível do respectivo inventário, como qualquer outro bem. Só que, diferentemente dos outros bens móveis, a obra artística carrega em si um reflexo da própria personalidade do artista, como se fosse uma extensão da sua pessoa, e que o direito designou, também de forma abstrata, de direitos morais do autor.
Você pode querer ler: Empresas correm risco pelo uso indevido de logos por assistências autorizadas
Dessa forma, quando ocorre o falecimento de um compositor, há a necessidade de providenciar a abertura do seu respectivo inventário para fins de transmissão hereditária de seus bens, inclusive suas obras musicais, aos seus sucessores. Vale ressaltar que, por óbvio, os sucessores não se tornam autores das obras dos falecidos. Eles apenas serão os titulares dos direitos autorais patrimoniais sobre aquelas obras e, por conseguinte, receberão os respectivos proveitos econômicos. A autoria permanece inalterada.
A nossa Constituição Federal determina, em seu artigo 5º, inciso XXVII, que “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. O Artigo 41 da Lei de Direitos Autorais fixa o tempo da seguinte maneira: “Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.”
Por fim, cabe esclarecer que os direitos patrimoniais são transmissíveis aos sucessores do autor sem exceções, contudo, nem todos os direitos morais do autor são transmissíveis. O art. 24 da Lei de Direitos Autorais estabelece, em seu § 1º, que apenas os seguintes direitos morais são transmissíveis: “por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV”, quais sejam: “I - o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; II - o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra (isto é, ter o nome, pseudônimo ou sinal convencional do autor falecido indicado na utilização da obra); III - o de conservar a obra inédita; IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra”.
Criar regras e disciplinar um tema tão complexo é, de fato, um grande desafio para o Direito. É como ter que tornar extremamente objetivo algo que é essencialmente subjetivo, que envolve afeto, dor, tristeza e tantas outras camadas da alma humana. Em meio a esse turbilhão de sensações e percepções, uma certeza podemos ter: todas as pessoas quando morrem deixam um legado, seja ele qual for, sem julgamento de valor. Mas o legado do artista é mais que uma referência e lembrança, é um patrimônio, um ativo, um bem móvel que, embora economicamente mensurável, carrega dentro de si um pedaço da alma do seu criador, cuja dimensão é impossível de ser definida.
E cuidar desse legado, embora seja um papel legal dos herdeiros, acaba por se tornar um compromisso coletivo de todos os que foram tocados por aquela arte. É um luto coletivo, que encontra na eternidade da criação a forma afetuosa de lidar com a dor da despedida do criador.
*Carol Bassin é advogada especializada em propriedade intelectual, legislação de incentivo e proteção autoral e Fernanda Freitas é advogada especializada em Direitos Autorais e do Entretenimento pela UERJ.
Add new comment