A influência da crise hídrica do Amazonas nas relações de consumo em todo o país

Por conta da crise hídrica, os rios que cortam a região estão apresentando os menores níveis históricos, prejudicando o escoamento dos produtos fabricados pelas indústrias locais./Canva
Por conta da crise hídrica, os rios que cortam a região estão apresentando os menores níveis históricos, prejudicando o escoamento dos produtos fabricados pelas indústrias locais./Canva
Embora a força maior não esteja expressamente previsto no Código de Defesa do Consumidor, é inegável que a sua incidência tem o condão de romper o nexo de causalidade, sendo equiparado à condição de excludente de responsabilidade.
Fecha de publicación: 03/11/2023

Conforme noticiado nos últimos dias, o Estado do Amazonas passa por uma das maiores crises hídricas da sua história em razão do famigerado fenômeno climático “El Niño”, agravado pelo aquecimento global.

Na região, está localizada a Zona Franca de Manaus, que é um modelo de desenvolvimento econômico criado pelo governo brasileiro para promover a industrialização e o desenvolvimento da região amazônica. A Zona Franca de Manaus é administrada pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) e abriga mais de 600 indústrias, compreendendo uma área de 10 mil quilômetros quadrados, incluindo a cidade de Manaus e seus arredores e prevê uma série de benefício às indústrias que se instalam no seu perímetro.

Fato é que por conta da crise hídrica sem precedentes, os rios que cortam a região estão apresentando os menores níveis históricos, prejudicando e até inviabilizando a navegação, o que, reflexamente, vem causando prejuízos ao escoamento dos produtos fabricados pelas indústrias locais, bem como para o recebimento das matérias-primas necessárias à sua fabricação.


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Os prejuízos às indústrias locais e à sociedade são enormes. Impactam no faturamento das indústrias, por conta da dificuldade do recebimento de insumos e do escoamento dos produtos industrializados, principalmente em uma época em que a demanda aumenta consideravelmente em virtude de datas como a Black Friday e o Natal e impactam, também, em todo ecossistema laboral do local, já que com menos circulação de bens e produtos, também  gera menor oferta de emprego e menos dinheiro em circulação.

Além disso, há também impactos tributários, já que as indústrias da região estão sujeitas a uma série de condições e prazos para cumprimento das etapas produtivas para o fim de serem elegíveis aos benefícios fiscais; e impactos jurídicos, como, por exemplo, o cumprimento do prazo de reparo previsto no artigo 18, §1º, do Código de Defesa do Consumidor, já que muitos reparos dependem da vinda de peças de reposição, que também são fabricadas no local.

De fato, o artigo 18, §1º, do Código de Defesa do Consumidor prevê de forma literal que não sendo o vício sanado no prazo máximo de 30 dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço.

A priori, não há nenhuma exceção à regra prevista no supracitado dispositivo legal, entretanto, não se deve afirmar que não existem exceções à referida regra.

Eventos climáticos enquadram-se no que a doutrina denomina como caso fortuito ou força maior e estão previstos no artigo 393, parágrafo único, do Código Civil: “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.


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Embora o caso fortuito e a força maior não estejam expressamente previstos no Código de Defesa do Consumidor, é inegável que a sua incidência tem o condão de romper o nexo de causalidade, sendo equiparado à condição de excludente de responsabilidade.

Logo, através de uma interpretação lógica, como o Código consumerista prevê a figura da responsabilidade objetiva que, por sua vez, prevê que para sua configuração, há a necessidade de demonstração do dano e do nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão do agente causador (fornecedor), em consagração ao princípio do risco da atividade, pode-se afirmar que as hipóteses de caso fortuito e força maior também se aplicam às relações de consumo.

Mas para melhor compreensão e aplicação nas relações consumeristas, convencionou-se criar uma subcategoria ao caso fortuito: o fortuito interno e externo.

Como dito, a doutrina e a jurisprudência estabelecem uma distinção clara entre duas categorias de eventos imprevisíveis que podem afetar a causalidade. O primeiro, conhecido como "fortuito interno," refere-se a eventos que estão intrinsecamente ligados à atividade do fornecedor e não rompem a conexão causal, o que significa que o fornecedor continua sendo responsável por eventuais danos. Por outro lado, o "fortuito externo" se refere a eventos imprevisíveis que ocorrem fora do âmbito da atividade do fornecedor, e nesses casos, a responsabilidade do fornecedor e de outros agentes na cadeia de consumo é afastada.

Nesse sentido, cito Louis Josserand:

"Ora, os acidentes nascidos de causas tão diferentes não devem ser tratados igualmente e aqui aparece o poderoso interessa da distinção: o acidente fortuito ligando-se intimamente à empresa, contribuindo para a formação do risco profissional, deve ser suportado pelo industrial, assim como todo o dano inerente à direção que ele deu à sua atividade. Mas não pode ser assim em relação aos acidentes determinados por uma força maior, ou seja, por uma força exterior à empresa, sobre a qual o proprietário não pode exercer qualquer influência, pelos elementos, pela guerra ou pela violência organizada, por todos esses eventos que a lei inglesa reúne sob as expressões 'fato de Deus ou dos inimigos da Rainha'. Esses eventos não tem nenhum relação com a empresa: o dano não foi verdadeiramente causado pela coisa, mas sim por uma força exterior, raio ou ciclone, tremor de terra ou pilhagem. O risco deve ser suportado por aquele que o criou e não por aquele que o sofreu: é sempre a mesma ideia que nos dita as conclusões. Ao impor ao proprietário a responsabilidade pelo risco criado, é, portanto, apenas o caso fortuito que a teoria objetiva lhe atribui". 


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Traçando-se paralelo através de exemplos práticos, pode-se considerar que a greve de funcionários seria um fortuito interno, pois apesar de certa forma ser um evento imprevisível, ela estaria associada à atividade das indústrias; enquanto eventos climáticos sem precedentes, como a crise hídrica do Estado do Amazonas, seria um fortuito externo,   sem associação com as atividades das indústrias.

Sendo assim, importante ressaltar que, para que tal hipótese seja caracterizada como fortuito externo, é necessário que o fabricante comprove que a impossibilidade do atendimento no prazo previsto  pelo parágrafo único do artigo 18, do Código de Defesa do Consumidor, está associada ao fortuito externo (crise hídrica).

Não obstante, considerando que existem métodos adequados de resolução de conflitos, deve-se mencionar que o parágrafo 2º, do artigo 18, do Código de Defesa do Consumidor prevê a possibilidade de as partes ajustarem uma ampliação do prazo de 30 dias para reparo, se mostrando um ponto de partida para uma resolução mais rápida, adequada e eficaz para o problema de falta de peças para reparo, que poderá ser ocasionado pela crise hídrica do Estado do Amazonas.

*Fernando Torre é sócio na LBCA e mestrando em direito político e econômico pelo Mackenzie.

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