LGBTQIA+: entre direitos e liberdade

É preciso que se discuta a liberdade dessas pessoas para além do reconhecimento formal dos seus direitos/Pixabay
É preciso que se discuta a liberdade dessas pessoas para além do reconhecimento formal dos seus direitos/Pixabay
De que adianta ter direitos e não poder andar de mãos dadas nas ruas sem medo?
Fecha de publicación: 28/06/2021

A liberdade terá sido episódica. Essa trágica e impactante constatação do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, ao referir-se aos mais diversos formatos de dominação dos corpos, ao longo da história, nunca esteve tão atual. Tempos atrás, o poder era exercido de forma explícita, e a sujeição das pessoas (dos sujeitos) se dava por meio da aplicação da força, violando-se a própria integridade física.

 

Exemplo disso foi o que aconteceu com o brilhante Alan Turing: o matemático e cientista que auxiliou a decifrar códigos alemães (dando origem ao primeiro computador) durante a Segunda Guerra Mundial - fator decisivo na vitória dos aliados. Ele foi condenado tão somente por ser homossexual, e, por isso, acabou sofrendo uma castração química para escapar da prisão (o que o levou ao suicídio).

 

Em tempos mais recentes, porém, o controle dos corpos passou a ser exercido de modo mais sutil e sofisticado. Aparelhos de poder como a igreja, a escola, a medicina e o próprio direito criaram mecanismos voltados ao estudo, catalogação, patologização e criminalização de “comportamentos sexuais desviantes”, tudo com o objetivo de estabelecer, como modelo padrão a ser estimulado, o relacionamento monogâmico, heterossexual e conjugal. Afinal, era o único que viabilizava a reprodução de mão de obra e impedia a dissipação de patrimônio (já que filhos tidos fora do casamento não tinham qualquer direito).


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Acontece que, se por um lado se passou a garantir a “liberdade” para o exercício da sexualidade, ou da performance do gênero, por outro, aquele que dela gozasse era tido como uma aberração doente e pecaminosa.

 

Nesse cenário, será mesmo que é possível dizer que um dia se pôde falar em liberdade de ser LGBTQIA+? Tal como quando se concedeu aos homens o total alvedrio para contratar, tudo para que, no estado de precariedade absoluta, pudessem ceder a sua força de trabalho pelo vil metal, ou quando se permitiu que o homem se tornasse o patrão de si mesmo, para que pudesse trabalhar exaustivamente sem que lhe fossem garantidos os mínimos direitos trabalhistas (fenômeno da "uberização”). Parece que não: a liberdade, aparentemente, costuma ser utilizada como um mero recurso retórico; uma dócil máscara daquele que busca controlar o outro sem ser percebido.

 

Diante disso, uma importante reflexão precisa ser feita: será mesmo que o reconhecimento dos direitos da população LGBTQIA+, por meio de ativismo judicial (já que o conservador Congresso Nacional não cumpre seu dever constitucional), representa um avanço no que diz respeito à garantia da liberdade (efetiva!) dessa vulnerável população?

 

Claro que não se discute que era absolutamente estapafúrdia a proibição de casamento entre pessoas do mesmo gênero. Também não põe em xeque o tamanho da bizarrice do entendimento jurisprudencial que condicionava a retificação do registro civil de transexuais à realização de cirurgias de redesignação sexual.

 

A transposição dessas barreiras, e de tantas outras (como a possibilidade de casais homoafetivos de adotar, ou a de homens gays doarem sangue), é um passo importantíssimo em prol da garantia da igualdade.

 

O ponto é: de que adianta ter a liberdade de casar, ter filhos, doar sangue etc. e não poder andar de mãos dadas com quem se ama sem medo de sofrer um xingamento na rua, ou até morrer, por simplesmente expressar o seu afeto?

 

De que adianta uma mulher transexual ter a liberdade de retificar o registro civil se continua sendo chamada de “ele” por pessoas que não detêm um pingo de civilidade, e continua tendo que encarar uma trágica expectativa de vida de apenas 35 anos?

 

De que adianta ter a liberdade de adotar um filho se se sabe que ele sofrerá bullying e terá sua saúde mental comprometida tão somente porque o acaso fez com que os seus pais fossem do mesmo gênero? Ter liberdade é mais do que ser livre, é ver que suas escolhas são verdadeiramente respeitadas.

 

O reconhecimento de direitos da população LGBTQI+ não é nada mais do que o mínimo. É a concretização, ao menos formal, da igualdade prevista em uma Constituição que foi promulgada há mais de 30 anos. É quase como um ato simbólico de se dar a alguém algo que já lhe pertence. Migalhas. Migalhas que, por vezes, impedem a morte do moribundo, mas que, apesar de matar a fome de alguém, não deixam de ser migalhas.

 

E, mesmo diante de tão pouco, ainda é preciso que se diga que reconhecer direitos da população LGBTQI+ nada tem a ver com privilégios, já que, em pleno século XXI, ainda há quem esteja lutando para impedir a garantia dos direitos básicos de gays, lésbicas, travestis etc., por mais que esse reconhecimento represente algo que não lhe afeta em absolutamente nada: é o simples querer ver-se com um direito que o outro não tem, para sentir-se em uma posição de superioridade.


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É importante que se consiga elevar a discussão, para que se pare a discussão sobre o mínimo. É preciso que se discuta a efetiva liberdade das pessoas LGBTQIA+, para além do reconhecimento formal dos seus direitos. É necessário lembrar que LGBTQIA+ é gente, e que é inadmissível que ainda se mate alguém em razão de ser o que se é.

Como é lamentável, em 2021, ainda precisar defender tudo isso!

 

*Felipe Caon é sócio do Serur Advogados e presidente do Comitê Serur +Diversidade.

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