Desde sua publicação, a Lei nº. 9.656/98 foi alvo de críticas e discussões. Recordo dos comentários no sentido de que a lei teria conseguido, à época, uma façanha: desagradar tanto os consumidores quanto a própria indústria. Sem mencionar a edição das incontáveis medidas provisórias, que deixavam o mercado e a comunidade jurídica confusos e inseguros. De toda forma, a Lei 9656/98 segue sendo um importante marco regulatório para um setor.
De lá para cá, algumas mudanças aconteceram e novos modelos, como a verticalização, foram criados, mas não houve mudanças estruturais capazes de fornecer ao sistema maiores capilaridade e lucratividade.
Hoje, mais de duas décadas depois, o sistema está sendo colocado à prova com a Covid-19. Discussões antigas ganham relevância e não será possível pensarmos em um cenário pós Covid-19 que mantenha o mesmo formato anterior. Assim como em todos os outros setores da vida, a saúde suplementar terá que aprender a viver em um novo normal.
E o que seria o novo normal para o setor e para a indústria de saúde suplementar?
Um dos aspectos que chamou a atenção da indústria foi a diminuição dos custosos atendimentos em prontos-socorros, que, antes da Covid-19, eram rotineiros e em números expressivos.
Com a população mais receosa em acessar o ambiente hospitalar, o atendimento primário via novas tecnologias se tornou uma prática que esperamos tenha vindo para ficar. A telemedicina, por tanto tempo criticada, hoje é aliada de todos, tanto da classe médica quanto das operadoras e dos pacientes.
Mas a telemedicina deve ser pensada além da tecnologia. O direito à privacidade, à intimidade e à proteção dos dados sensíveis, já no âmbito da nova Lei Geral de Proteção de Dados, que entrará em vigor em agosto de 2020, devem ser pensados e serem objetos de criação de políticas e processos dentro das operadoras e na relação prestador e paciente.
O acompanhamento do histórico do paciente via atendimentos não presenciais deve também ser avaliado, com o intuito de garantir que uma necessária ida ao hospital ou realização de exame não seja postergada de forma a criar maiores riscos ao paciente, responsabilidade ao médico e maiores gastos futuros à operadora com procedimentos de maior complexidade que poderiam ter sido evitados se o atendimento presencial tivesse sido indicado no momento exato.
Esse foco no paciente, nas informações e histórico, que sempre foi importante na prestação dos serviços de saúde suplementar, torna-se essencial para a sobrevivência sustentável do sistema no mundo pós Covid-19.
Os modelos de pagamento do setor também devem, de uma vez por todas, serem reavaliados e essa discussão não pode mais ser deixada de lado.
O bom e velho fee for service já não se mostra mais adequado para a complexidade do nosso sistema e para a diversidade de procedimentos, planos e pacientes.
É importante dizer que os modelos de pagamento não podem levar em conta tão somente a relação operadora e prestador de serviços médicos, mas devem também olhar para o cliente e para as características e necessidades de cada grupo.
O foco deve ser a qualidade do serviço prestado, que atenderá ao cliente de forma satisfatória, e a eficiência do atendimento, que propiciará maior rentabilidade às operadoras e prestadores.
E a experiência mostra que a adoção de um mix de meios de pagamentos (como já fazem Suécia e Reino Unido) pode ajudar no processo, já que certamente não há um modelo único de pagamento que atenderá de forma adequada todos os casos ou todas as etapas dos atendimentos. Portugal, por exemplo, usa o modelo de payment per performance para o atendimento primário, enquanto usa o sistema de bundle payments para doenças crônicas.
Somado a isso, temos hoje a possibilidade de contratação de resseguro diretamente pelas operadoras, sendo mais um elemento de diluição de risco a ser usado para rentabilizar a operação do setor.
Por fim, não podemos deixar de falar do papel do legislador e do regulador nesse processo de mudança pós Covid-19.
Depende do regulador e também do legislador, propiciar ao mercado maior flexibilidade que permita às operadoras trabalharem com uma gama mais ampla de modelagem de planos que aumentem a capilaridade do sistema. Modelagens que dividam mais o risco com o cliente, que confiram maior liberdade para as partes escolherem o quanto irão gastar ao longo do ano (no melhor modelo dos seguros saúde hoje disponíveis no mercado internacional), que privilegiem boas práticas de saúde e de medicina preventiva, precisam ser repensadas.
Propiciar mais liberdade ao mercado não quer dizer deixar de regular, mas sim focar no que é essencial regular para aumentar a capilaridade do seguro saúde na sociedade, a qualidade do atendimento, bem como diminuir as reclamações e possibilitar rentabilidade para as operadoras.
Não é uma tarefa fácil, mas é algo que não podemos mais postergar, sob pena de falência do nosso sistema.
*Luciana Prado é sócia na área de seguros e resseguros do Demarest Advogados.
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