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Embora a prisão preventiva seja exceção em nosso sistema jurídico, essa forma de custódia processual está presente em número elevado de ações penais, sobretudo aquelas iniciadas por prisões em flagrante.
A partir da perspectiva do réu, qualquer prisão é sinônimo de punição. Afinal, é sobre seu corpo que se fecham os grilhões, é ele quem estará separado da família e segregado da sociedade.
Do outro lado, também a liberdade provisória pode ter sabor de definitiva, sobretudo quando demora meses ou anos para chegar. Mesmo quando vem a ser condenado a uma pena de prisão (especialmente no regime semiaberto), o réu em liberdade faz as contas da detração, estuda os lapsos legais da LEP, consulta a defesa e conclui: para a prisão eu não volto. Agora resta continuar assinando e recuperar a vida em sociedade, cumprindo o regime aberto.
Para a surpresa de muitos, porém, alguns julgadores reservam uma cartada final que poderá significar seu pior pesadelo: mesmo tendo ficado durante meses ou anos em prisão preventiva, cumprido desse jeito tempo superior ao lapso previsto para a progressão, o réu precisa voltar. Ser preso de novo para apenas então pleitear o direito de ser solto.
Tecnicamente, o motivo é o seguinte: o direito à progressão ao regime aberto só poderia ser concedido ao sentenciado em sede de execução penal, e não pelo juízo que o condenou.
Em tese, o juízo de conhecimento poderia aplicar a Súmula 716 do Supremo Tribunal Federal, a qual prevê que o tempo de prisão provisória seja computado para fins de progressão de regime, especialmente caso não haja outras ações penais em andamento.
Porém, o artigo 105 da Lei de Execução Penal determina que será expedida guia de recolhimento (instrumento que dá início à execução penal) após o trânsito em julgado, “caso o réu esteja ou venha a ser preso”. A questão interpretativa está no conceito de "venha a ser preso".
A princípio, o significado da expressão poderia ensejar o entendimento de que o recolhimento do sentenciado seria imprescindível para o início da execução em qualquer hipótese.
Contudo, diante da possibilidade concreta de requerer benefícios ao juízo da execução, capazes de desencarcerar ou alterar o regime em que está inserido o indivíduo, seria inviável e abusivo impor a prisão como condição para ter seu pedido apreciado.
Essa exigência caracterizaria efetiva negativa de jurisdição, violando a garantia do acesso à Justiça (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal). Isso porque, neste interstício, não haveria juízo competente para atender aos justos pleitos do sentenciado, que seria obrigado a se recolher ao cárcere simplesmente para ser ouvido.
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Neste ponto, é possível realizar interpretação por analogia em relação à antiga ideia de que o réu precisaria se recolher preso para apelar, conforme se entendia antes da Lei 11.719/08. Naquele momento, houve a compreensão de que obrigar o réu a se recolher ao cárcere para exercer seu direito à apelação impedia seu acesso à Justiça.
O mesmo ocorre nessa situação. Mesmo condenado com trânsito em julgado, o cidadão permanece detentor de todos os direitos não suprimidos pela sentença, em especial os direitos ligados ao cumprimento da própria pena, como o reconhecimento de benefícios executórios.
Em referência direta à colocação da ministra Cármen Lúcia naquele contexto, verifica-se que o cidadão condenado se vê obrigado ao depósito de seu “próprio corpo” para que possa pleitear benefícios aos quais já tem direito segundo a lei.
Portanto, no que tange ao art. 105 da LEP, conclui-se que a única interpretação conforme a Constituição de 1988 seria compreender que o termo "vier a ser preso" trata da hipótese de a sentença transitada em julgado determinar pena de prisão – e não de esta ser concretizada.
Até porque convivemos hoje com a figura da execução provisória, a qual existe justamente para permitir a concessão de direitos e benefícios aos sentenciados presos antes do trânsito em julgado. O mesmo direito deve, por óbvio, ser estendido aos sentenciados soltos que já cumpriram seus lapsos.
Assim, não há como concluir apressadamente que a guia de execução só pudesse ser expedida com o cumprimento do mandado de prisão. Esta noção equivocada decorre de sucessivos erros de interpretação, que contradizem a norma Constitucional e não merecem prosperar.
Há farta jurisprudência do STF e do STJ reconhecendo que “o prévio recolhimento à prisão pode configurar condição excessivamente gravosa a obstar o mero pleito dos benefícios da execução”.
Assim, quando a sentença determina prisão e o réu ainda não foi detido – especialmente quando a defesa requerer que seja dado início à execução para realização de pedidos possivelmente desencarceradores – a guia de execução deverá ser expedida sem a nefasta condição.
Embora já amplamente reconhecido pelos Tribunais Superiores e até pelo Ministério Público Federal, que rotineiramente emite pareceres favoráveis a esse respeito, o entendimento não vem sendo aplicado por magistrados e desembargadores, sobretudo no Tribunal de Justiça de São Paulo.
Defende-se a urgente mudança de posicionamento dessas corte, para que deixem de exigir do cidadão condenado que deposite o próprio corpo como garantia para poder pedir sua própria liberdade – a fim de que possam exercer o direito de cumprir corretamente a pena imposta, e nada além.
*Fernanda Peron é advogada criminalista e sócia do Jacob Lozano advogados.
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