Agatha Christie, Dr. Seuss e a cultura do cancelamento: republicação de obras em domínio público

As leis, embora muitas vezes coincidam em traços largos, também determinam certas especificidades quando se trata de modificação de obras/ Giovana Miketen - Unsplash.
As leis, embora muitas vezes coincidam em traços largos, também determinam certas especificidades quando se trata de modificação de obras/ Giovana Miketen - Unsplash.
Todos os romances com Miss Jane Marple e alguns com Hercule Poirot serão reescritos.
Fecha de publicación: 13/04/2023

Que a sociedade está em constante mudança não é segredo nem surpreendente, embora o ideal seja que as mudanças sejam para melhor, com critérios progressistas e não repressivos, mas embora a mudança seja inevitável, nem sempre significa que ela é bem recebida. Tudo muda, e na cultura do cancelamento que se aplica, aparentemente, cada vez com mais frequência neste lado do mundo, as mudanças são mais constantes do que em outros ambientes.

Dessa forma, a discussão que tem ocorrido em vários países sobre a necessidade de reescrever os clássicos literários para adequá-los às sensibilidades atuais pode ser entendida como parte dessa cultura da censura, pois já não basta mais publicar um aviso antes do início dos livros (ou nos filmes, como a Disney fez) para lembrar ao leitor que o que ele lerá a seguir foi escrito em um contexto cultural diferente ou por uma pessoa cujos valores não seriam mais bem-vindos hoje, mas ao contrário, agora certas obras foram modificadas ― às vezes substancialmente ― para não apresentar cenários ou frases que possam ser vistas de maneira muito negativa ou ofensiva à luz dos critérios atuais. Como dito, poderia ser entendido como parte da cultura do cancelamento, mas a verdade é que não é.

A mais recente adição a esta crítica literária, que é feita sobre obras que passaram para o domínio público, são os vários romances de Agatha Christie: todos aqueles com Miss Jane Marple como protagonista e alguns cujo protagonista é Hercule Poirot, como Morte no Nilo. A maior parte das alterações centra-se em referências étnicas, de nacionalidade ou físicas, para as tornar politicamente corretas. As mudanças foram motivadas pela editora HarperCollins, que criou novas edições (suprimindo a impressão das versões originais) de todas as aventuras de Miss Marple e do detetive Poirot que são de domínio público.

Pelo menos Christie saiu-se melhor da publicação de suas obras do que o Dr. Seuss, cujo legado foi parcialmente removido temporariamente das edições futuras pela Dr. Seuss Enterprises, administradora das obras do autor americano, que decidiu há um ano não publicar ou vender mais seus livros And to Think That I Saw It on Mulberry Street, If I Ran the Zoo, McElligot's Pool, On Beyond Zebra!, Scrambled Eggs Super! e The Cat's Quizzer, por retratar certos personagens "de maneiras ofensivas e incorretas", segundo a entidade, que explicou que essa decisão, pensada por meses, responde a um compromisso de "garantir que o catálogo da Dr. Seuss Enterprises represente e apoie todas as comunidades e famílias”.


Leia também: A gestão coletiva da propriedade intelectual em contextos digitais


O que dizem as leis de direitos autorais?

A revisão de obras que são gerenciadas por administradores ou que agora fazem parte do domínio público segue as diretrizes atuais e as diretrizes que as leis de direitos autorais delinearam. Embora possa haver alguma resistência de algumas pessoas a mudanças nas edições literárias originais, que podem ser descritas tanto como antiéticas como inteligentes por muitos, a verdade é que editores, administradores de direitos e indivíduos podem não apenas editar livremente, mas fazer uma reescrita ou reinterpretação de obras de domínio público ou cujos direitos gerem.

Assim determina a maioria das legislações nacionais, elaboradas em grande parte seguindo as diretrizes da Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, que estabelece padrões mínimos para a proteção das obras e dos direitos de seus autores. De acordo com o Acordo, os autores mantêm os direitos exclusivos de explorar, publicar e editar suas obras até sua morte, e então os administradores de seu legado podem mantê-los por 50 anos após a morte do criador, ao final dos quais passarão a domínio público. O número de anos varia de acordo com cada legislação. No Reino Unido, de onde Christie era, a proteção se estende até 70 anos após a morte do autor.

Por exemplo, nos Estados Unidos (de onde é a HarperCollins), a Lei de Direitos Autorais, que inclui o Copyright Term Extension Act (CTEA), que, por sua vez, é uma extensão do Copyright Act de 1976, concede exclusividade por 95 anos. No caso de Agatha Christie, todas as suas obras estarão em domínio público em 2073 (The Mysterious Affair at Styles, 1920, e The Secret Adversary, 1922, foram as primeiras a entrar em domínio público). Como a maior parte da obra da escritora britânica foi publicada neste país antes da entrada em vigor da lei de 1976, suas histórias entrarão em domínio público 95 anos após sua publicação neste país.

Também nos Estados Unidos, aplica-se o princípio de que se as obras foram publicadas simultaneamente no exterior e lá são tratadas como se fossem publicações norte-americanas e, portanto, estão sujeitas aos direitos autorais domésticos, isso significa que o país de origem do autor não influencia a determinação da duração dos direitos nos Estados Unidos.


Sugestão: Como o ChatGPT afeta a propriedade intelectual no Brasil?


O que dizem os especialistas?

As leis, apesar de muitas vezes coincidirem em grandes traços, também determinam certas especificidades quando se trata de modificação de obras, embora raramente impeçam ou censurem revisões posteriores para adequá-las aos novos critérios sociais que vão surgindo, modificações que, a propósito, não são necessariamente prejudiciais.

É o que explica Denise Louzano, associada do Veirano Advogados, que assegura que "desde que a obra original permaneça à disposição do público e seja feita a devida referência a ela, a adaptação da obra para maior compatibilidade com os valores sociais vigentes não é necessariamente prejudicial”, até porque “o período de proteção dos bens de propriedade intelectual, mesmo quando uma obra cai em domínio público, visa também permitir que a obra seja atualizada e desenvolvida de acordo com a evolução da sociedade”. 

Isso significa, nas palavras da especialista em PI, que as adaptações podem tornar a obra mais acessível às novas gerações, desde que a obra original esteja disponível como bem cultural.

"Não obstante o fato de que a principal função da legislação de propriedade intelectual seja proteger os direitos de exploração da obra pelo autor, a adaptação de obras em domínio público (uma vez expirado o referido prazo) pode manter sua relevância, consumo e valor para as novas gerações, cumprindo sua função educativa à luz da evolução social.”

De qualquer forma, a revisão e posterior edição das obras não é um acontecimento inédito ou isolado, pois muitos clássicos, principalmente os publicados em meados do século passado, foram reeditados por seus próprios autores para adaptá-los a novos tempos ou outros critérios literários, próprios ou de mercado. Assim, como diz Louzano, “vale a pena considerar se os próprios autores cujas obras estão sujeitas a adaptações teriam feito mudanças se estivessem vivos ou cientes dos contextos sociais e ideológicos atuais”.

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.