Goldsmith vs. Warhol, a decisão final afetará a arte derivada?

Embora muitas vezes seja fácil determinar se um novo trabalho é transformador o suficiente, a verdade é que o uso justo depende mais de diretrizes gerais e decisões judiciais preexistentes / RERC
Embora muitas vezes seja fácil determinar se um novo trabalho é transformador o suficiente, a verdade é que o uso justo depende mais de diretrizes gerais e decisões judiciais preexistentes / RERC
A base da discussão da Suprema Corte dos EUA foi determinar o quão transformadora foi a intervenção de Warhol no retrato de Prince feito por Goldsmith e julgar se as duas obras tinham o mesmo propósito e caráter.
Fecha de publicación: 29/06/2023

Em 18 de maio, a Suprema Corte dos Estados Unidos resolveu de vez a polêmica entre a fotógrafa Lynn Goldsmith e a Andy Warhol Foundation for the Visual Arts, Inc. desde 2016, quando, por ocasião da morte de Prince, a artista descubriu (o uso da serigrafia Prince Orange como material de referência) que a AWF forneceu à Vanity Fair uma imagem retocada pelo artista pop de uma fotografia que ela tirou do cantor em 1981, sem lhe dar crédito ou pagar royalties por seu uso.

Parece confuso para você? A explicação acima pode ser um tanto complicada, como complicado foi o caso que três tribunais (um federal, um de apelações e, finalmente, a Suprema Corte) ouviram para determinar se as modificações que Andy Warhol fez na fotografia de Goldsmith eram substanciais o suficiente para ser considerada um trabalho derivado sob a doutrina de fair use.

Acontece que, de acordo com a decisão do mais alto tribunal dos EUA, não eram.

Uso justo: uma doutrina ambígua

Fair use, ou uso justo, é a modificação de qualquer material protegido por direitos autorais, que tenha sido feita para um propósito limitado e transformador, por meio da criação de um trabalho novo e derivado que seja suficientemente diferente do original como, por exemplo, por meio de crítica, comentário, paródia, colagem, pastiche ou outras reinterpretações de uma obra protegida por direitos autorais, sem que constitua (por se tratar justamente de uma obra nova) violação de direitos autorais de terceiros ou do autor original.

O fair use de uma obra pode ser feito sem a permissão do proprietário dos direitos autorais.

Embora muitas vezes seja fácil determinar se um novo trabalho é transformador o suficiente, a verdade é que o uso justo depende mais de diretrizes gerais e decisões judiciais preexistentes, quando uma disputa como essa entre Goldsmith e os executores de Warhol chega aos tribunais, para orientar os juízes e advogados.


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Na doutrina norte-americana, esse conceito é tão amplo quanto o de liberdade de expressão, pois os legisladores não quiseram delimitá-lo com especificidades, mas deixá-lo aberto à interpretação. Por isso, casos como o da serigrafia de Prince podem obter resultados contraditórios na Justiça, até que se cheguem a conclusões definitivas, como a obtida no mês passado.

O confronto entre a fotógrafa e a AWF é particularmente importante, pois a linha tênue que separa o uso legítimo da cópia ou plágio foi mais imperceptível neste caso do que em outros.

As sentenças

Para alguns, repassar os contornos em preto e mudar a cor da foto (como Warhol fez na obra original de Goldsmith) não é suficiente para criar uma nova obra.

Esse foi o argumento da fotógrafa desde o início, embora o Tribunal Federal do Distrito Sul de Nova York (o primeiro tribunal a julgar o processo) não concordasse com ela, considerando que Warhol fez da foto um ícone e, portanto, transformou-a

No entanto, o segundo tribunal (o Tribunal de Apelações do Segundo Circuito de Nova York), que ouviu o recurso, decidiu a favor de Goldsmith, considerando que Warhol não alterou suficientemente a fotografia.

Dada a divergência de critérios e a disparidade de decisões, foi necessário recorrer à Suprema Corte dos Estados Unidos (Scotus), que manteve em suspenso não só Goldsmith e AWF, mas também artistas em geral.

Modificar contornos e dizer que novos ícones foram criados não é suficiente

A base de discussão da Scotus foi determinar o quão transformadora foi a intervenção de Warhol no retrato de Prince.

Esta foi, segundo todos os relatos, uma discussão difícil, já que decidir a favor de Goldsmith significava estabelecer jurisprudência e colocar em risco todos os artistas performáticos que poderiam ser afetados por ações judiciais sobre seus trabalhos derivados, caso o autor do original acreditasse que eles não são novos. Mas decidir a favor da Fundação era admitir que os artistas poderiam fazer poucas alterações no trabalho de outros e escapar impunes de uma muito provável violação de direitos autorais. Praticamente, estava-se pedindoà Corte que julgasse a própria natureza da arte.


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Essas eram as posições opostas entre entidades, advogados, especialistas em arte e artistas, que esperaram meses pela decisão da Corte: saber qual seria a decisão era essencial, porque para alguns (como John Roberts e Elena Kagan, os juízes que votaram a favor da AWF), concordar com Goldsmith é sufocar a criatividade, frustram criadores e afetam a geração de novas ideias artísticas; enquanto concordar com os executores de Warhol estava afetando a proteção de direitos autorais, “mesmo contra artistas famosos”, como disse a juíza Sonia Sotomayor ao redigir a decisão final.

A decisão da Scotus limitou-se ao básico, julgando que as duas obras têm o mesmo propósito e caráter, de modo que, apesar de vozes divergentes (como Roberts e Kagan), ainda há muito espaço para interpretação de novas controvérsias sobre o fair use  que surjam daqui para frente, principalmente se levarmos em conta que a arte se alimenta continuamente de si mesma.

Como explica Mark Tratos, sócio da prática de mídia e entretenimento do Greenberg Traurig - EUA, a decisão da Suprema Corte dos EUA que respaldou a posição de Lynn Goldsmith "tem uma redação restrita para se concentrar em apenas um dos fatores de uso justo estabelecidos na seção 107 da Lei de Direitos Autorais. Como tal, limita, mas não elimina trabalhos derivados."

Isso significa que o medo de que a decisão sufoque os artistas pode ser um tanto exagerado, pois a Corte ainda reconhece que algumas obras derivadas são de uso aceitável, "especialmente aquelas que criticam, comentam ou ridicularizam o original".

O limite estabelecido pelo Tribunal foi imposto a trabalhos derivados que tenham exatamente a mesma natureza, finalidade e mercado que o original (no caso em questão, ambas as imagens eram de natureza editorial para uma revista e para uso comercial).

“Se os trabalhos derivados podem reduzir o mercado de originais, sua natureza transformadora provavelmente não os salvará sob a nova interpretação da Suprema Corte”, disse o especialista.

O foco deve estar na natureza e no propósito das novas obras

Especialistas como Peter J. Karol, decano associado e professor de direito da New England Law (Boston), garantiram que a arte conceitual será afetada e que alguns outros artistas originais irão contra artistas conceituais, colagistas e designers gráficos que praticam o uso justo em seu trabalho, bem como todos os trabalhos derivados de agora em diante merecem a mesma análise de uso justo que este caso fez; mas é realmente o caso, à luz da decisão?


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Para a primeira premissa, Tratos diz que é mais provável que ações futuras se concentrem em arte nova do que em arte existente, enquanto, para a segunda, todas as futuras análises de uso justo devem se concentrar na finalidade e na natureza do uso, conforme exigido pelo primeiro dos quatro fatores de uso justo.

“Antes dessa decisão, alguns tribunais acreditavam que, se o segundo uso transformasse o original e, portanto, fosse uma nova expressão, não importava que a obra derivada pudesse deslocar o mercado do original. Esse não é mais o caso sob a nova regra”, especialmente porque se uma obra derivada transformadora for da mesma natureza e finalidade que a original, seu uso poderá limitar o valor de mercado da obra original e reduzir o valor dos direitos do proprietário dos direitos autorais. Impedir que isso aconteça é o objetivo da decisão da Scotus.

Vozes como a de Karol são acompanhadas por especialistas como Amy Adler, professora de direito da Universidade de Nova York, que escreveu um amicus curiae em apoio à Warhol Foundation e acredita que a decisão limitará significativamente a criação de trabalhos derivados, independentemente da contribuição artística inovadora do segundo trabalho, preocupando-se mais com as implicações comerciais.

No entanto, Tratos difere, porque, para ele, é difícil quantificar o que Adler quer dizer com limitar “significativamente” a quantidade de trabalhos que se baseiam em obras anteriores, uma vez que não está realmente clara qual a porcentagem de novas obras se enquadrará nessa categoria.

“O tribunal reconhece que o objetivo dos direitos autorais é fornecer um incentivo financeiro para que os criadores de arte lucrem com suas criações originais. Um dos direitos do detentor dos direitos autorais é o direito de criar obras derivadas. Se outros podem criar obras derivadas sem compensar o proprietário original pelo que emprestaram, então a exceção provavelmente engolirá a regra."

O advogado acredita que a Suprema Corte tentou explicar a intenção original do Congresso quando adotou a exceção de uso justo na seção 107 e que foi alcançada porque os dois tribunais inferiores falharam em aplicar adequadamente o primeiro dos quatro fatores de uso justo, concentrando-se exclusivamente sobre o caráter transformador da obra derivada, sem analisar se ambas as obras tinham a mesma finalidade, “o que tornava o primeiro fator sem sentido. A Suprema Corte simplesmente restaurou o primeiro fator na seção 107 para a análise adequada que os tribunais devem realizar para determinar se um trabalho posterior é infrator ou faz um uso justo do original”.

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