Como a gestão de contratos pode impactar os litígios?

Questões relacionadas a obrigações contratuais são as mais demandadas na Justiça Estadual, segundo o CNJ./Canva
Questões relacionadas a obrigações contratuais são as mais demandadas na Justiça Estadual, segundo o CNJ./Canva
Conheça estratégias capazes de impactar de forma relevante o cenário da litigiosidade contratual para qualquer empresa.
Fecha de publicación: 18/08/2023

A última edição do relatório “Justiça em Números” (edição de 2022, referente ao ano-base de 2021), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que reúne estatísticas oficiais do Poder Judiciário brasileiro, informa que a Justiça Estadual brasileira concentra mais de 70% dos casos novos ingressados no Judiciário.

 

As questões de direito civil estão entre os temas mais frequentes na Justiça Estadual, tanto em primeiro quanto em segundo grau, sendo que aquelas relacionadas a obrigações contratuais ocupam a primeira posição entre os assuntos mais demandados. O relatório em questão chega a mencionar que “o assunto obrigações/espécies de contratos é um nó presente em diversos tribunais”. No relatório anterior (edição de 2021, referente ao ano-base de 2020), a situação era bastante semelhante, com alguma variação percentual.

 

Refletindo-se sobre a questão da litigiosidade relacionada aos contratos, é preciso ter em mente, em primeiro lugar, que o perfil brasileiro ainda é muito tendente à disputa, em detrimento de soluções alternativas, como a mediação.


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Considerando-se tal conceito em um recorte específico relacionado ao panorama empresarial, é baixa a probabilidade de que uma empresa ou grupo empresarial com certa longevidade se mantenha totalmente livre de situações envolvendo conflitos contratuais, seja na fase de disputa judicial ou arbitral, ou mesmo na fase pré-litigiosa, em que descumprimentos e desavenças são identificados e/ou começam a receber algum tratamento (por exemplo, reclamações, notificações, convocações para reuniões, trocas de e-mails etc.).

 

Embora seja possível identificar motivadores de conflitos que estão fora do controle das partes, ou com relação aos quais pouco se possa fazer em termos de prevenção, tais como, por exemplo, fatos imprevisíveis, dolo e má fé e eventos relacionados a terceiros, parte significativa dos fatores que levam a divergências contratuais pode ser controlada ou cuidada preventivamente pela empresa, com o objetivo de mitigar riscos ou de influenciar positivamente o resultado de eventuais demandas.

 

A verdade é que há estratégias capazes de impactar de forma relevante o cenário da litigiosidade contratual para qualquer empresa, mas que, por mais contraditório que possa parecer, não recebem a merecida importância.

 

A primeira delas é simplesmente contratar de forma apropriada. Não se trata somente de fazer contratos que sejam bem escritos e completos (não necessariamente longos), mas de garantir que sejam contratações sustentáveis (por exemplo, com partes que tenham capacidade técnica e econômica para cumprir com as obrigações postas, prevendo contrapartidas e prazos factíveis) e que reflitam exatamente o que será praticado durante a relação contratual.

 

O alcance de tal objetivo depende de uma série de medidas, que podem incluir, por exemplo, a preparação individualizada e adequada de propostas e ofertas ou de concorrências privadas, o desenvolvimento de processos internos eficientes, a contratação de serviços jurídicos de qualidade para o desenvolvimento do conjunto contratual e/ou de sua negociação, o mapeamento de riscos e de sua tolerância pela organização, cuidado adicional no uso de modelos ou formatos padronizados, entre outras.


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O contrato deve ser visto pelas contratantes como uma espécie de manual, um verdadeiro guia para materialização dos direitos e o cumprimento das obrigações contratuais. Portanto, os procedimentos e os prazos previstos no contrato não podem ser estabelecidos aleatoriamente. Devem, sim, ser amplamente discutidos entre as partes (não apenas pelos departamentos jurídicos, mas também pelos times técnicos e administrativos envolvidos nas rotinas afetas ao objeto), a fim de que reflitam práticas reais, exequíveis e razoáveis, em linha com os objetivos do negócio, e que sejam harmônicas entre si.

 

Esse último ponto, aliás, é muito importante. Estabelecer condições e procedimentos no contrato e agir de modo diferente do contratado, especialmente de forma reiterada, é criar o panorama perfeito para, a um só tempo, incentivar a instalação de desavenças, desgastar a relação entre as partes e fragilizar a posição da empresa, ampliando significativamente o risco de multas, indenizações e de demandas.

 

É a partir daí, inclusive, que surge outra estratégia relevante para a mitigação de conflitos contratuais: cuidar da gestão dos contratos.  Não há contrato bem escrito que resista à administração contratual sem controle de dados e documentos, desorganizada e despreparada. Nesse sentido, determinadas práticas de descentralização ou pulverização de responsabilidades (por exemplo, excluir-se o jurídico de determinadas etapas da contratação ou de sua gestão) podem, sim, fragilizar a posição da empresa.

 

O time responsável por administrar o contrato precisa estar apto não apenas a proteger o cumprimento do contrato tal como concebido, mas, eventualmente, a perceber, a partir do desenrolar da rotina contratual, que determinada disposição (por exemplo, uma obrigação, um prazo ou um procedimento), foi prevista de modo pouco claro ou não realista e precisa ser (adequadamente) revisitada e renegociada. Afinal, mesmo que um contrato tenha sido bem-negociado e redigido, muitos fatores adversos só podem ser verdadeiramente percebidos durante a sua execução.

 

É preciso, ainda, desenvolver a consciência de que determinadas condutas, especialmente se forem constantes, podem modificar a relação contratual, criando ou extinguindo direitos e/ou obrigações, ou mesmo estabelecendo expectativas legitimas pela outra parte, e criando espaço para futuros conflitos.


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Além disso, o universo documental de um contrato é, não raras vezes, formado por uma pluralidade de documentos: o conjunto principal, composto pelo contrato em si ou as condições gerais de contratação, seus eventuais anexos (tabelas, manuais, códigos internos, adendos e outros materiais), e aditamentos, bem como documentos que registram e comprovam o desenrolar da relação e seu histórico (ainda que não modifiquem formalmente a contratação), tais como cartas, notificações, e-mails trocados, atas de reunião, ou mesmo documentos relacionados à fase negocial, como ofertas, propostas, memorandos de intenções e afins.

 

A equipe de gestão contratual, esteja ou não concentrada na área jurídica da empresa, precisa compreender tal conceito e cuidar para que esse conjunto de informações seja preservado. Em situação de litígio, será essencial mapear o histórico contratual, entender a linha do tempo da relação entre as partes, identificar fragilidades, contradições e problemas e conhecer os fatos na máxima extensão possível.

 

É importante que as empresas enxerguem o desenvolvimento, a negociação e a gestão de contratos não apenas como estratégia para obter os melhores negócios para a empresa, mas também como meio de mitigação de riscos, de prevenção de contingências ou, quando e se os litígios forem inevitáveis, como um caminho para reduzir a exposição da organização e garantir elementos de reação eficaz.

 

*Rochelle Ricci é sócia da área de Contratos do escritório Machado Associados.

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