Sobre a resolução de conflitos na DAO

Inexiste uma figura central na administração executiva da DAO./Foto: Canva
Inexiste uma figura central na administração executiva da DAO./Foto: Canva
O fato de a DAO possuir disposições autoexecutáveis é suficiente para evitar preocupações das partes quanto a aspectos relacionados à resolução de disputas?
Fecha de publicación: 14/06/2023

Recentemente, temos visto a criação de novas tecnologias, cujo objetivo é mudar a maneira como as pessoas se organizam e realizam transações. Dentre os recentes avanços tecnológicos que teriam essas características, destaca-se a DAO (decentralized autonomous organization ou organização autônoma descentralizada).

A DAO pode ser qualificada como uma espécie de organização (empresarial ou não) governada coletivamente. Os membros da DAO, ao comprarem um token dessa organização, passam a ter poder de voto, de modo que toda e qualquer proposta deve ser submetida ao grupo para deliberação e só será praticada caso o quórum mínimo predeterminado seja atingido. Inexiste, assim, uma figura central na administração executiva da DAO. 

Ainda com relação à estrutura da DAO, nota-se que esta surge de um smart contract inserido em uma blockchain. No lugar de um estatuto social registrado na junta comercial, sua origem está em um código, cujas disposições são autoexecutáveis e só podem ser alteradas em contextos específicos, como, por exemplo, quando a alteração do código for objeto de votação dos seus integrantes. Qualquer quórum que não seja o mínimo não desencadeará o mecanismo if, then (se, então) subjacente ao smart contract


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Apesar da aura futurística da DAO, isso não significa que ela está livre de eventuais litígios. Afinal, apesar de estar embasada em um código, o funcionamento da organização ainda depende de interações entre os seus membros, bem como com clientes e terceiros provedores de serviços. 

Dessa forma, questiona-se: de que forma os conflitos envolvendo as DAOs serão resolvidos? O fato de a DAO possuir disposições autoexecutáveis é suficiente para evitar preocupações das partes quanto a aspectos relacionados à resolução de disputas? 

Em caso de ausência de qualquer previsão, o judiciário será competente para analisar eventuais disputas envolvendo a DAO. A dificuldade está na identificação do foro: a DAO não tem personalidade jurídica e seus membros, no mais das vezes, estão espalhados ao redor do mundo. 

Daí a importância de se prever em um instrumento escrito a escolha do foro aplicável. Em se tratando de um cliente ou prestador de serviço, por exemplo, a DAO e referido terceiro podem redigir um contrato que preveja o tribunal judicial que será responsável por dirimir eventuais conflitos, evitando quaisquer discussões sobre o foro judicial competente quando a disputa efetivamente surgir. 

Mas as possibilidades não se esgotam no judiciário. No lugar de uma cláusula de eleição de foro judicial, pode-se incluir uma cláusula de arbitragem. Neste ponto, destaca-se que os conflitos da blockchain não apenas podem ser submetidos às arbitragens convencionais, mas igualmente às arbitragens descentralizadas. 

Nas arbitragens convencionais, os litigantes podem optar por uma arbitragem institucional ou ad hoc, a qual é limitada à fase de conhecimento. Assim, a sentença arbitral constituirá título executivo judicial (LArb, art. 31; CPC, art. 515, VII) e, caso a parte perdedora não a cumpra voluntariamente, caberá à parte ganhadora executá-la no judiciário. 

Já as arbitragens descentralizadas partem de instituições codificadas na blockchain que utilizam o mecanismo peer-to-peer para julgar as disputas. Referidas instituições são acionadas em caso de discordância quanto ao cumprimento do smart contract, com a posterior remessa da disputa aos árbitros, os quais são selecionados dentre os indivíduos vinculados à plataforma de resolução de disputas. Na pendência de decisão, os tokens das partes envolvidas são bloqueados em uma conta. Com a decisão, os fundos da parte vencida são enviados aos árbitros como honorários e à contraparte vencedora como resultado da condenação.

Além da utilização das instituições de arbitragem descentralizada, também é possível que o conflito seja resolvido a partir de uma votação dos membros da própria DAO. Nesse caso, os participantes da DAO ― ou o programador originário do smart contract ― podem incluir no código uma previsão que desencadeará a liberação dos fundos de um membro sempre que houver condenação pelo coletivo. 

Além de prever o foro em que eventuais disputas serão resolvidas, é importante que os membros da DAO também estabeleçam a lei aplicável para resolução de controvérsias. Isso porque, diante da estrutura descentralizada da DAO, torna-se difícil identificar os elementos de conexão pertinentes para definição da lei aplicável ao mérito e questões processuais da disputa.


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A mesma estrutura descentralizada também dificulta a identificação, conforme as leis nacionais, do representante do coletivo. Assim, também é relevante que as partes prevejam quem representará a DAO em eventual disputa perante um tribunal para evitar discussões sobre o tema no momento do litígio. 

Como vê-se, ainda que a DAO represente uma nova tecnologia e tenha mecanismos que permitam a autoexecutoriedade dos seus termos, isso não significa que seja desnecessário se preocupar com a definição prévia de aspectos relevantes na resolução de disputas. Tanto é assim que têm surgido alternativas criativas no mercado para resolução de referidas controvérsias, como a votação feita por membros da DAO e as arbitragens descentralizadas.

Desse modo, mesmo diante das soluções criativas ora mencionadas, quanto mais os operadores da DAO estabelecerem previamente a moldura aplicável à resolução do conflito, menor serão os custos para as partes após o surgimento da disputa. Esse é uma regra que é aplicável aos contratos tradicionais e continua sendo verdadeira às DAOs.

*Milena Cecília dos Santos Arbízu é advogada sênior e líder de equipe de Resolução de Disputas (judicial e arbitral) e Catarina de Farias Paese é advogada no BMA Advogados.

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