Para entendermos quais são as melhores práticas para evitar a prática de insider trading em escritórios de advocacia, precisamos primeiramente compreender os riscos envolvidos. A prática de insider trading é a utilização de informação relevante ainda não divulgada relativa a um emissor de valores mobiliários, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem no mercado de tais títulos. Tal vantagem pode ser para a própria pessoa que obteve a informação privilegiada ou para qualquer terceiro.
A informação privilegiada pode ser boa ou ruim, pois em ambos os casos é possível lucrar no mercado de capitais. Se a informação for boa, a ilegalidade está em comprar o valor mobiliário sabendo que o seu valor vai aumentar no futuro. Neste caso, quem usou a informação causou um dano ao vendedor. Se for ruim, também a pessoa poderá lucrar vendendo o valor mobiliário antes que a informação se torne pública. Aqui, quem foi lesado foi o comprador, pois era certo que o preço cairia. Por isso que é uma conduta que representa um ilícito cível, no qual a pessoa que sofreu o dano pode buscar indenização, um ilícito administrativo, pois a Comissão de Valores Mobiliários poderá aplicar penalidades pelo dano causado ao mercado com tal manipulação, e um ilícito criminal, punido com reclusão de 1 a 5 anos, podendo ser ampliada em mais 1/3 caso o infrator também tivesse um dever de guardar sigilo, pelo dano causado a toda a sociedade. Se for cometida em um escritório de advocacia, podem ser configuradas outras violações, como ao dever de sigilo entre advogados e seus clientes.
É uma conduta grave e que representa imensos riscos. A melhor forma dos escritórios de advocacia se protegerem é adotando boas práticas de prevenção ao insider trading, as quais já se mostraram eficientes em mercados de capitais mais maduros que o brasileiro, e que podem, certamente, reduzir em muitos os riscos de o ilícito ocorrer.
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Já conhecemos, então como prevenimos o insider trading?
No que concerne à prevenção desse tipo de infração, é fundamental que os escritórios possuam um Código de Conduta que trate especificamente de insider trading. Tal código deve regular de forma clara as práticas admitidas ou não no ambiente de trabalho quando forem envolvidas informações privilegiadas.
A primeira prática relevante é identificar as informações privilegiadas, de forma que seja possível segregar os documentos e comunicações relevantes. Os sistemas do escritório devem ser capazes de restringir o acesso a informações relevantes de companhias abertas, por exemplo, e de deixar claro a razão pela qual tal restrição existe. Em muitas situações, há informações privilegiadas em praticamente todos os documentos relacionados a uma operação. Se uma companhia aberta vai fazer uma aquisição, todo e qualquer pedaço de papel pode representar uma possível “dica” que seja utilizada para insider trading. Simples anotações de uma reunião ou notas de honorários deixadas no lugar errado podem ser suficientes para revelar informações privilegiadas.
Além da capacidade de identificar as informações, os sistemas do escritório também devem ser capazes de registrar todas as pessoas que tiveram acesso a elas. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, após operações relevantes, os escritórios são demandados a passar uma lista com o nome de todas as pessoas que tiveram contato com aquelas informações dentro do escritório para Financial Industry Regulatory Authority (FINRA), a qual cruza tais dados com as informações das negociações, tentando identificar operações não apenas dessas pessoas como também de seus familiares e outras pessoas relacionadas. Ou seja, poder dizer quem teve acesso a tais informações é absolutamente essencial para proteger o escritório.
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O Código de Conduta também deve deixar claro quais são as operações de mercado permitidas ou não para seus advogados e demais funcionários. Uma alternativa é proibir a negociação de papeis de companhias abertas de forma direta, autorizando apenas a detenção de quotas de fundos de investimentos administrados por terceiros que não sejam clientes do escritório. Uma política um pouco menos restritiva é a de criar blackout periods, ou seja, períodos nos quais não é possível negociar papéis de uma companhia específica. Normalmente esses períodos são aplicáveis aos próprios administradores das companhias. No caso de escritórios de advocacia ou bancos de investimento, é difícil implementar tais políticas, pois lidam com muitas companhias ao mesmo tempo e apenas o anúncio do bloqueio já pode ser uma “dica” de que existe uma operação relevante sobre aquele emissor. Bancos de investimentos podem instalar sistemas sofisticados para monitorar operações de seus membros, mas escritórios de advocacia não têm os mesmos recursos. Assim, é melhor adotar regras claras e gerais do que trabalhar com períodos de bloqueio, criando, por exemplo, uma lista restrita de títulos para os quais os colaboradores têm proibição total de negociação.
Outra boa prática é criar canais de comunicação, indicando uma pessoa do escritório que seja responsável por esclarecer dúvidas com relação ao código de conduta. Assim, se uma pessoa vai fazer uma operação financeira e não tem certeza se é permitida pelo Código de Conduta do escritório ou não, ela deve saber a quem perguntar. Um bom programa de compliance facilita a vida de quem está querendo fazer a coisa certa. O mesmo canal de comunicação também deve servir para estimular whistleblowers, ou seja, pessoas que denunciem irregularidades cometidas por colegas. O canal de comunicação deve garantir o absoluto sigilo de quem revelou a prática ilegal de um colega. Quem está protegendo a organização deve também ser protegido.
Por fim, é importante que o Código de Conduta também faça referência à necessidade de cautela no ambiente externo de trabalho, incluindo situações como conversas em elevadores, eventos sociais que envolvam outras empresas e discussões que normalmente seriam restritas ao ambiente de trabalho. Mesmo dentro do escritório, determinadas informações não podem ser compartilhadas com colegas, mantendo a política de segregação de informações existente com relação aos documentos. Informações privilegiadas apenas podem ser discutidas com o time de trabalho identificado para uma operação específica.
Como fazer as pessoas aderirem ao código de conduta?
Um código não se aplica sozinho. É necessário que todas as pessoas, em qualquer nível hierárquico, entendam o problema e trabalhem para evitar riscos. Para tanto, é fundamental contar com um programa de capacitação abrangente que não apenas reconheça essa questão, mas também demonstre o quão severas são as penalidades, tanto para os indivíduos envolvidos quanto para os escritórios que empregam essas pessoas.
Esse programa deve englobar todas as situações potenciais de uso ilegal de informações privilegiadas, sendo baseado em exemplos concretos das múltiplas formas de tal prática. O treinamento também deve ser regular, adaptando-se ao avanço não apenas de novas práticas de insider trading, mas das ferramentas implementadas para o seu combate.
Essas estratégias são comuns para mitigar o risco de violação de informações confidenciais, criando um escudo protetor em torno do escritório para evitar qualquer tentativa nesse sentido que possa vir a manchar a reputação da organização e de todos os seus colaboradores.
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Mas mesmo conhecendo e combatendo, ainda pode acontecer!
Nenhum programa de compliance é infalível. Assim como qualquer programa de computador pode ser hackeado, qualquer programa de compliance pode ser burlado por uma pessoa mal-intencionada. Não é impossível imaginar que alguém entraria em um escritório de advocacia apenas para ter acesso a informações privilegiadas.
Assim, o trabalho começa ao contratar novos advogados ou estagiários. É fundamental realizar uma análise das experiências passadas e do histórico de qualquer candidato em consideração, a fim de obter uma compreensão completa de sua trajetória, solicitando, por exemplo, que o candidato apresente recomendações de antigos professores e empregadores.
Sabendo que programas de compliance perfeitos não existem, o escritório deve ter meios de investigar possíveis denúncias e um procedimento já definido para o tratamento de tais situações, incluindo a notificação das partes envolvidas e do regulador quando forem identificadas irregularidades.
Se os colaboradores da organização tiverem a certeza de que terão a sua reputação protegida, trabalharão melhor. Se pessoas mal-intencionadas também tiverem a crença de que seus atos serão denunciados e punidos, será possível prevenir o insider trading. E os benefícios serão colhidos não apenas por um escritório, mas por toda a sociedade.
*Carlos Portugal Gouvêa é sócio do PGLaw e Professor da Faculdade de Direito da USP.
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