A Emenda de Kigali no contexto de emissões do Brasil

A possível ratificação da Emenda de Kigali trará à tona uma problemática que tem deixado parte da indústria apreensiva/Freepik
A possível ratificação da Emenda de Kigali trará à tona uma problemática que tem deixado parte da indústria apreensiva/Freepik
País deveria congelar o consumo dos hidrofluorcarbonetos em 2024, mas não ratificou tratado.
Fecha de publicación: 07/10/2021

Em 1985 um conjunto de nações se reuniu na Áustria manifestando preocupações técnica e política quanto a possíveis impactos que poderiam ser causados com o fenômeno da redução da camada de ozônio. Na ocasião, foi formalizada a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio, cujo texto enunciava uma série de princípios relacionados à disposição da comunidade internacional em promover mecanismos de proteção ao gás estratosférico – o único que filtra a radiação ultravioleta do tipo B (UV-B), nociva aos seres vivos – prescrevendo obrigações genéricas que instavam os governos a adotarem medidas jurídico-administrativas apropriadas para mitigar ou evitar a sua redução.

A formalização da Convenção foi fundamental para que, em 1987, fosse elaborado o Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio (SDOs), que possui status jurídico de tratado internacional e está em vigor desde 1989. Atualmente, esse Protocolo apresenta adoção universal, tendo a participação de 197 países como signatários, incluindo o Brasil. O documento impõe obrigações específicas, em especial a progressiva redução da produção e consumo das SDOs, até a sua total eliminação.


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Os esforços da comunidade internacional em torno da questão geraram resultados positivos significativos. A implementação das medidas de redução pelos países veio acompanhada de um constante crescimento da preocupação em reduzirem as emissões de gases, bem como um aumento na conscientização da sociedade e implementação de projetos ambientais, tecnológicos e de desenvolvimento econômico para prevenir o agravamento do aquecimento global. O Brasil promulgou a Convenção de Viena e o Protocolo de Montreal, por meio do Decreto nº 99.280, de 6 de junho de 1990, e implementou políticas públicas visando cumprir com as metas trazidas por esses tratados.

Em outubro de 2016, mais de 30 anos após a promulgação do primeiro tratado sobre o tema, as nações que assinaram o protocolo decidiram na 28ª Reunião das Partes, ocorrida em Kigali, Ruanda, pela aprovação de uma emenda que inclui os hidrofluorcarbonetos (HFCs) na lista de substâncias controladas pelo documento.

Apesar de não causarem danos à camada de ozônio, os HFCs geram elevado impacto ao sistema climático global e vêm sendo utilizados há décadas como alternativas em substituição aos CFCs e HCFCs. Ele se junta à lista de outros gases já controlados por esses tratados, entre eles os clorofluorcarbonos, halons, tetracloreto de carbono, hidroclorofluorcarbonos, bromoclorometano e brometo de metila.

A concretização do disposto na Emenda de Kigali visa a prevenção de emissões de gases de efeito estufa à atmosfera, fortalecer o combate à mudança do clima e contribuir para que se alcancem os objetivos do Acordo de Paris sobre mudança do clima. A implementação dos compromissos pelos países em desenvolvimento será apoiada por recursos do Fundo Multilateral do Protocolo de Montreal.

O compromisso adotado em Kigali prevê cronogramas diferenciados de redução do consumo para países desenvolvidos (classificados no documento como grupo A2), que utilizam os HFCs há mais tempo, e países em desenvolvimento (grupos A5-1 e A5-2), até um patamar mínimo a ser atingido de forma escalonada. Entre as metas finais de redução de consumo foram estabelecidas as de 80% até 2045 para o grupo A5-1, de 85% até 2047 para o grupo A5-2 e de 85% até 2036 para o grupo A2.

O Brasil pertence ao grupo A5-1 (grupo 1 do artigo 5) e deverá congelar o consumo dos HFCs em 2024, iniciando sua redução escalonada a partir de 2029, para em 2045 atingir o consumo máximo de 20% em relação à linha de base (anos de 2020-2022).

No entanto, apesar de uma recente iniciativa no Congresso, o país ainda não ratificou a Emenda de Kigali. O decreto que a regulamentará, o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 1100/18, segue pendente de aprovação desde junho de 2019. Apesar de seguir em regime de prioridade e ter sido aprovado em três comissões, o texto ainda aguarda votação na Câmara dos Deputados. Em 25 de agosto de 2021, houve a aprovação de requerimento do deputado Rodrigo Agostinho, que solicitou a realização de audiência pública, no âmbito da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara - CREDN, com o intuito de discutir sobre o PDC. Ainda não houve a designação de data para a audiência.

A possível ratificação da Emenda de Kigali trará à tona uma problemática que tem deixado parte da indústria apreensiva. Isso porque a contabilização do volume de consumo de HFC que comporá a linha de base terá sido impactada pelo baixo consumo de HFCs em razão da pandemia de Covid-19.

Diante disso, diversas empresas que utilizam os HFCs em seus processos produtivos vêm pleiteando a postergação dos anos base, uma vez que é esperado aumento no consumo das substâncias nos próximos anos devido à retomada econômica. Assim, a estabilização do volume de consumo prevista pelo texto da Emenda de Kigali impactará o planejamento de parte da indústria e demandará investimentos não previstos de muitas empresas que não contavam com a pandemia, sem falar no peso concorrencial que produtos estrangeiros exercem sobre o setor.

Vale destacar que Estados Unidos e China, dois dos maiores consumidores dos HFCs no mundo, também não ratificaram a Emenda de Kigali até o momento. De qualquer maneira, existe uma grande expectativa de que os dois países façam isso em breve, considerando sua importância no contexto das mudanças climáticas e em razão da política do Governo Biden sobre o tema.


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No entanto, ainda que os dois países ratifiquem a emenda, aparentemente não enfrentarão os mesmos problemas que o Brasil. Isso porque, por pertencerem ao grupo A2, ambos deverão adotar os anos de 2011 a 2013 como linha de base. Consequentemente, não seriam afetados pela brusca redução do consumo de HFCs ocasionada em razão da pandemia.

Portanto, ainda que ratificado, é importante que as autoridades ambientais e a indústria engajem em discussões para rever os anos que serão utilizados como base para calcular a média de produção e consumo de forma a compatibilizar os interesses de proteção ao meio ambiente e de geração da indústria.

*Giovani Bruno Tomasoni e Rafael Gil são, respectivamente, sócio e associado de Meio Ambiente, Consumidor e Sustentabilidade do Trench Rossi e Watanabe.

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