O Judiciário e as mulheres em situação de violência

Cenário de insegurança jurídica que reforça a rota de crítica de mulheres que buscam o sistema Judiciário à procura de acolhimento/Canva
Cenário de insegurança jurídica que reforça a rota de crítica de mulheres que buscam o sistema Judiciário à procura de acolhimento/Canva
Sistema recursal agrava as dificuldades na busca pela proteção.
Fecha de publicación: 07/03/2022

A escuta de mulheres em situação de violência e o exercício de traduzir as suas necessidades ao Poder Judiciário torna evidente que o acesso a direitos não se dá apenas pela existência da Lei Maria da Penha, mas também com a sua forma de aplicação nas varas de violência doméstica e nos Tribunais de Justiça.

 

Ainda que questões de direito processual pareçam secundárias quando se está diante de uma situação de violência, é fato que impactam sobremaneira o acesso à justiça por mulheres, seja reforçando o caráter protetivo da lei ou constituindo um verdadeiro obstáculo aos seus direitos.

 

Nesse contexto, um exemplo dessas barreiras processuais é o recurso cabível em casos de indeferimento ou revogação de medidas protetivas de urgência. Como se sabe, a medida é analisada, e deferida ou não, de forma incidental no início dos processos de investigação instaurados.


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Essa divergência pode ser prejudicial à própria efetividade da Lei Maria da Penha que, dentre outros aspectos, prevê que, no prazo de 48 horas, o magistrado deve deliberar sobre a instauração do processo e decidir sobre as medidas protetivas pleiteadas; nesse sentido, para que haja a harmonização dessa regra com o bem que se pretende proteger, a análise do recurso contra a decisão que indefere a medida protetiva deveria também observar prazo similar.

 

Contudo, diante da ausência de previsão legal expressa, os Tribunais de Justiça divergem quanto ao recurso cabível nesses casos admitindo quatro meios distintos de insurgência: recurso em sentido estrito, apelação, mandado de segurança e gravo de instrumento.

 

Ainda que seja possível a aplicação do princípio da fungibilidade – isto é, admite-se que um desses recursos seja aceito como outro, reconhecendo-se que há justificada dúvida sobre a via adequada para questionamento da decisão de primeiro grau –, inúmeros problemas são enfrentados nessa etapa processual.

 

Outro aspecto importante a ser considerado é o fato de que os recursos de apelação ou em sentido estrito não são dotados de efeito suspensivo ou comportam qualquer pedido liminar ou de tutela antecipada, o que impacta de forma determinante o prazo para eventual reforma da decisão. Caso seja necessário aguardar o julgamento colegiado, perde-se o caráter de urgência e a mulher permanece exposta a risco por meses, quiçá, anos.

 

Se, por um lado, os recursos de apelação e em sentido estrito são interpostos na origem e depois remetidos ao Tribunal, o agravo de instrumento pode ser interposto diretamente em segunda instância, com pedido liminar, sendo seu processamento e análise muito mais célere.

 

Insegurança jurídica e ausência da proteção efetiva

 

Há, portanto, um cenário de insegurança jurídica que reforça a rota de crítica de mulheres que buscam o sistema Judiciário à procura de acolhimento. Em outras palavras, o sistema processual agrava as dificuldades já enfrentadas pelas mulheres em busca de ajuda para saírem de relações violentas. Após lidarem com a não concessão de medida protetiva, elas sequer conseguem acessar o segundo grau com segurança e com resposta em prazo razoável para atender às suas necessidades.

 

Por isso, é fundamental que os Tribunais Superiores se posicionem de forma uníssona e diretiva sobre o recurso adequado e a prerrogativa do Desembargador de apreciar monocraticamente o pedido relacionado à concessão de medidas protetivas.


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Considerando esses fatores, parece plausível considerar que o recurso mais adequado para a reforma de decisões interlocutórias – aquelas que são proferidas no curso de um processo, mas não colocam fim a ele – seja o agravo de instrumento, dada a celeridade de seu processamento e possibilidade de análise liminar. Por outro lado, em casos de sentenças, é importante que os tribunais viabilizem algum meio que permita a antecipação dos efeitos da tutela do recurso de apelação, seja aceitando pedidos de antecipação da tutela recursal, fazendo-se um paralelo com o Código de Processo Civil.

 

De fato, o que não pode admitir é que a ausência de orientação processual adequada aos Tribunais prevaleça e impeça que mulheres possam questionar decisões relativas às suas medidas protetivas no tempo adequado para reestabelecer a sua segurança e cessar o risco vivenciado. O acesso ao duplo grau de jurisdição é direito previsto em nossa Constituição e deve ser garantido a todas as mulheres.

 

*Ariane Guimarães e Flavia Regina Oliveira são sócias, e Bianca dos Santos Waks e Letícia Ueda Vella são advogadas do Mattos Filho.

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