Receitas geradas depois do prazo da Lei do Minha Casa Minha Vida têm ou não têm os benefícios tributários? 

O direito à manutenção do equilíbrio do contrato deve, pois, ser assegurado à empresa contratada pela Administração Pública/Pixabay
O direito à manutenção do equilíbrio do contrato deve, pois, ser assegurado à empresa contratada pela Administração Pública/Pixabay
Contratos podem continuar a ter o benefício do Regime Especial Tributário.
Fecha de publicación: 04/11/2021

A pergunta que tem assombrado muitos empreendedores e investidores teve um importante esclarecimento no fim de setembro, quando foi publicado acórdão proferido pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em voto presidido pelo Ministro Benedito Gonçalves no Recurso Especial de nº 1.878.680. O julgado negou provimento ao recurso interposto pela Fazenda Nacional que desafiava outro acórdão, este de autoria da Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, mantendo de forma unânime a sentença proferida pela Justiça Federal de Primeiro Grau Alagoana. No cerne da questão, a parte autora – que veio a prevalecer em todos os graus de jurisdição – pleiteava ver reconhecido seu direito ao benefício do chamado Regime Especial Tributário do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) aplicável às receitas aferidas em quatro contratos de construção celebrados pouco antes do final do prazo da Lei.

Expliquemos melhor a questão. Os empreendimentos imobiliários sujeitos ao regime especial tributário do patrimônio de afetação gozam de um importante benefício tributário que corresponde à alíquota unificada de 4% sobre a sua receita mensal. Esse benefício foi fundamental para o desenvolvimento de inúmeros empreendimentos imobiliários.


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O patrimônio em afetação, de maneira geral, tem sido peça chave na expansão do mercado imobiliário, espelhando fenômeno verificado em outros países que o adotaram. A segregação da universalidade de bens vinculados a um propósito específico da pessoa jurídica “central” do incorporador, assim compreendida aquela que o representa no mercado, ampliou o horizonte de financiamentos disponíveis, ao mesmo tempo que conferiu segurança aos adquirentes de unidades autônomas. 

Feita a explicação e voltando a atenção para o caso em exame, destacamos que o regime especial tributário é ainda mais atrativo no âmbito do PMCMV. Nessa seara, a alíquota unificada é de 1%, representando uma economia que, ao longo dos anos, foi responsável por direcionar diferentes e relevantes investimentos e esforços para o mercado habitacional de interesse social. 

A Lei nº 12.024/2009, responsável por introduzir o regime especial tributário específico do PMCMV trouxe, por óbvio, alguns requisitos para que os empreendedores fruíssem desse benefício, tais como: existência de um contrato com empresa construtora; a contratação precisa ter por objeto a construção de unidades habitacionais de valor de até R$ 124 mil no âmbito do PMCMV e data limite de 31 de dezembro de 2018. 

O julgamento ora examinado, cotejando contratos de construção firmados em setembro de 2018, concentrou-se em responder a uma pergunta que gira em torno do último desses requisitos: pode uma contratação realizada anteriormente à data limite, mas cuja execução se estenderá para além dela, ensejar o benefício tributário para a incorporadora? 

O STJ respondeu afirmativamente, ecoando as decisões que lhe precederam em primeira e segunda instância. 

O fato de o julgamento ter ocorrido em 2021 facilitou em muito a análise da Corte. Em 27 de dezembro de 2019 foi editada a Lei nº 13.970/2019 que, alterando o §6º do art. 4º da Lei nº 10.931/2004, permitiu melhor precisar o marco temporal ao dispor que: 

Art. 4º
[...]
§6º Para os projetos de incorporação de imóveis residenciais de interesse social cuja construção tenha sido iniciada ou contratada a partir de 31 de março de 2009, o percentual correspondente ao pagamento unificado dos tributos de que trata o caput deste artigo será equivalente a 1% (um por cento) da receita mensal recebida, desde que, até 31 de dezembro de 2018, a incorporação tenha sido registrada no cartório de imóveis competente ou tenha sido assinado o contrato de construção. [grifos nossos]

Se essa redação deixa claro que o marco legal definia o momento último de formalização do contrato e registro de incorporação – e não de fruição do benefício – a legislação em vigor ao tempo em que a ação foi proposta permitia maiores dúvidas3. E a nova redação foi, sem dúvida, alicerce para a decisão que agora começa a pacificar a matéria. 

Mas, para além da questão tributária, há um ponto na história dessa controvérsia que não deve ser ignorado pelos imobiliaristas. A sentença proferida pelo juízo de primeira instância, quando ainda não havia sido editada a Lei nº 13.970/2019, demonstra uma sensível compreensão do universo das incorporações imobiliárias ao dispor:

Como visto, a sistemática de recolhimento tributário aplicável a referidos contratos obedece a uma lógica especificamente fixada para tanto, no caso, estabelecendo o Regime Especial de Tributação (RET), assegurando à construtora contratada o recolhimento de tributos à base de um por cento da receita mensal auferida pelo contrato de construção. 

Em que pese a interpretação que vem sendo delineada pela União no sentido de que o art. 2º da Lei nº. 12.024/2009 teria estabelecido o dia 31 de dezembro de 2018 como termo final para aplicação do RET, ou seja, que o RET apenas teria vigência até referida data, entendo que esta interpretação não se mostra consentânea aos fins a que a norma se destina.

Logo, entendo que suprimir o RET impõe alteração nas condições econômicas, implicando necessariamente a revisão completa das condições do negócio jurídico, no caso, em prejuízo da própria União, haja vista as despesas provenientes do aumento da carga tributária a ser aplicada à receita mensal auferida pelo contratado. 

O direito à manutenção do equilíbrio do contrato deve, pois, ser assegurado à empresa contratada pela Administração Pública, preservando-se a segurança jurídica e, principalmente, as condições em que o pacto foi firmado. 

Combatendo a lógica perde-ganha arguida pela Fazenda Nacional no caso em exame, o julgador prestigiou aquele que é o verdadeiro racional da sistemática legislativa das incorporações imobiliárias e patrimônio em afetação: a oneração do incorporador reverbera em todos os agentes envolvidos direta ou indiretamente na incorporação, sejam eles adquirentes, agentes financeiros ou mesmo arrecadadores. Nessa lógica, fundamental que a justiça seja guardiã do equilíbrio dos contratos firmados no âmbito da incorporação. 

E como fica essa questão no âmbito daquele que veio a substituir o PMCMV, o Programa Casa Verde e Amarela? Embora não a tenha o STJ enfrentado – como não lhe caberia fazê-lo - o §9º do art. 2º-A da Lei nº 12.024/2009, introduzido pela Lei nº 14.118/2021, deve ser suficiente para respondê-la:

§ 9º Para os fins do regime de pagamento unificado de tributos sobre a receita mensal auferida pelo contrato de construção de que trata este artigo, o Programa Casa Verde e Amarela, na forma de sua legislação federal específica, é sucessor do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). [grifos nossos]

Aqui nos parece que não só o pagamento unificado de tributos, mas também a interpretação sobre os beneficiários do Regime Especial Tributário prevalecerá. Embora a legislação que introduziu o Programa Casa Verde e Amarela não ter enfrentado especificamente o tema, o voto do Ministro Benedito Dantas se deteve bastante na forma como a redação que institui o benefício – parte da qual reproduzida na norma acima transcrita – conforme excerto abaixo:

Nesse sentido, destaco que o dispositivo, como consequência do atendimento dos requisitos que coloca, permite que a contratada efetue "o pagamento unificado de tributos equivalente a um por cento da receita mensal auferida pelo contrato de construção". "Pelo" configura, na língua portuguesa, uma contração resultante da união entre uma preposição ("por") com um pronome demonstrativo (por + o). A preposição utilizada serve para conectar o benefício fiscal ao contrato, ou seja, o benefício fiscal (recolhimento unificado) será gozado "pelo" contrato.


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O contrato firmado é uma condição objetiva para o gozo do benefício fiscal e este será usufruído "por" aquele, ou seja, durante a vigência ou sobrevivência daquele. Assim como compreenderam os juízos de primeiro e segundo graus, entendo que a interpretação do dispositivo legal é a de que o benefício fiscal é devido "pelo" contrato. Desse modo, enquanto o contrato não se exaurir, o benefício fiscal também não estará exaurido: o recolhimento unificado e a vida do contrato estão correlacionados normativamente. A fórmula temporal está relacionada ao benefício fiscal, mas também ao próprio contrato, de modo que a sua aplicação se conecta ao surgimento e duração contratual. [grifos nossos]

Entendemos, nesse contexto, que contratos do PMCMV que forem reenquadrados no Programa Casa Verde e Amarela continuarão a fruir do benefício do Regime Especial Tributário desde que cumpridos demais requisitos. 

*Marc Stalder e Flávia Bahia Vidigal são advogados do Demarest.

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