Brasil abriu precedente na regulamentação de aplicativos de transporte: o que falta fazer?

A maioria dos regulamentos estabelece uma série de requisitos de circulação que são principalmente administrativos. / Unsplash - Volodymyr Proskurovskyi.
A maioria dos regulamentos estabelece uma série de requisitos de circulação que são principalmente administrativos. / Unsplash - Volodymyr Proskurovskyi.
Conheça as normas vigentes na América Latina em relação ao funcionamento deste tipo de serviço, bem como os avanços no aspecto trabalhista.
Fecha de publicación: 11/07/2023

Em toda a região latino-americana, existem diferentes iniciativas para regular os vínculos trabalhistas ou comerciais entre as plataformas de serviços de aplicativos e as pessoas que trabalham por meio delas. Na maioria desses países, prevalece um modelo legislativo que permite o funcionamento do Uber, Cabify, 99, InDrive ou Blablacar, entre outras soluções locais, desde que atendam a uma série de requisitos de circulação que são principalmente administrativos.

Em uma matéria anterior, a LexLatin revisou o panorama da regulamentação dos aplicativos de entrega, ou entrega em domicílio que, no planejamento urbano moderno, dividem o cenário com os que se dedicam aos serviços de transporte.

Desde 2015, com o anúncio da chegada do Uber na América Latina, os aplicativos de serviços de transporte privado são definidos como intermediários entre passageiros e motoristas, oferecendo uma alternativa tecnológica que facilita a solicitação e a prestação desse tipo de serviço.


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O seu modelo de negócio assenta na flexibilidade dos motoristas, no pagamento por viagem e na capacidade de escalar e expandir os seus serviços através de plataformas digitais, como as próprias plataformas designam.

Brasil, cinco anos depois

Em 2018, após dois anos de discussões, o Brasil aprovou a Lei Federal nº 13.640/2018, que deixou nas mãos dos municípios o poder de regular os aplicativos de transporte. A iniciativa abriu precedente na região, dado o vácuo legal que existia após a chegada de empresas como Uber e 99 e sérios conflitos entre motoristas de aplicativo e taxistas que já trabalhavam na praça.

Para Douglas Siqueira Artigas, sócio do escritório Ernesto Borges Advogados, “assim como a maioria das Leis aprovadas no Brasil, esta também guarda suas lacunas e gera dúvidas sobre temas não abrangidos pelo legislador”.

Segundo Artigas, embora o objetivo do legislador, em 2018, parecia ser adequar o regulamento ao cenário que se iniciou com as plataformas ou aplicações de transporte de passageiros, sob licenças de operação, a Lei 13.640/2018 se preocupou basicamente em arrecadar, dos cofres públicos, os eventuais tributos derivados desse novo serviço.

“Veja que a referida lei concede ‘exclusivamente’ aos municípios e ao Distrito Federal a regulamentação e o controle do transporte por meio de aplicativos ou plataformas digitais. No entanto, obriga-os a observar as diretrizes e recolher os impostos necessários”, afirma.

O advogado questiona que a única vez que a legislação olha para passageiros e motoristas, em termos de segurança e garantias, é ao determinar que deve haver seguro de acidentes pessoais e que o motorista contribua para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o que o leva a concluir que a preocupação do legislador não foi o transporte e a segurança dos passageiros ou condutores, mas, antes de tudo, a tributação decorrente da atividade e, só posteriormente, um "leve" cuidado com os usuários, seus direitos e os motoristas.


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A Lei Nacional também não traçou um caminho seguro para que a atividade seja regulamentada de forma unificada ou, pelo menos, igualitária entre os municípios, pois, conforme está redigida, cada um dos municípios pode traçar suas diretrizes, causando enorme insegurança jurídica, não só para usuários, mas também para motoristas e até para plataformas e aplicativos, diz o advogado, que pensa que talvez isso explique o fato de algumas cidades menores do Brasil não terem o serviço de transporte por aplicativo.

Diante desse panorama, Siqueira Artigas não duvida que há espaço para melhorias na legislação e, entre as prioridades, aponta também os aplicativos de entrega e admite que o legislador não tem conseguido acompanhar esse tipo de iniciativas tecnológicas que têm surgido rapidamente e foram amplamente aceitas.

O modelo de regulação sob licenças

Em 2015, a Cidade do México e, posteriormente, em 2017, o município de La Paz, na Bolívia, foram as jurisdições pioneiras em regular a operação de plataformas digitais intermediárias para o transporte individual. A regulamentação emitida destaca-se por exigir contribuições, apólice de seguro e registro em órgãos fiscalizadores.

Este modelo é o mais próximo da regulamentação no Equador, onde os aplicativos de transporte enfrentaram uma série de desafios legais para operar, além de disputas com taxistas tradicionais e autoridades do setor em diversas cidades.

Maria Isabel Cisneros, consultora jurídica da Cisneros Arias Legal, no Equador, explica que essas plataformas, perante a Lei Orgânica de Transporte Terrestre, Trânsito e Segurança Rodoviária, "são consideradas ferramentas para otimizar a gestão do transporte, mas não provedoras desse serviço, ou seja, são provedoras e administradoras de uma ferramenta tecnológica que conecta oferta e demanda de serviços de mobilização, mas não prestam esse serviço”. Assim, descarta-se um possível reconhecimento de vínculo empregatício, a exemplo do que ocorreu em países como França, Reino Unido, Holanda e, recentemente, na Costa Rica, por meio de decisões em processos judiciais.


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No Equador, Uber, DiDi e InDrive operam de maneira regulada em Quito e Guayaquil. Em março deste ano, a Cabify deixou de prestar o serviço nas principais cidades do país, argumentando que “seu modelo de negócios não reagiu com o mesmo nível de crescimento e rentabilidade da região como um todo”.

A regulamentação em vigor estabelece que as plataformas de transporte devem obter uma licença e cumprir alguns requisitos, tais como:

  • Ter um escritório físico no Equador.
  • Ter veículos que reúnam determinadas características (veículos com idade máxima de 15 anos, modelos de quatro portas, com cintos de segurança funcionais e sem sinalização de táxi, entre outras).
  • Comprovar que os motoristas estão registrados e têm uma licença profissional.

A relação empregatícia entre motoristas e plataformas está realmente descartada?

Nesse sentido, a especialista do Cisneros Arias Legal comenta:

“A atividade de mobilização ou transporte, a rigor, não faria parte das atividades habituais dos gestores dessas plataformas, uma vez que operariam uma modalidade de contratação civil. No entanto, as autoridades competentes (Agência Nacional de Regulação e Controlo dos Transportes Terrestres, Trânsito e Segurança Rodoviária e as autarquias metropolitanas e municipais descentralizadas) não emitiram os regulamentos secundários que permitam estabelecer claramente o âmbito da relação entre as plataformas e os particulares que, por fim, prestam o serviço”.


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Entretanto, a alternativa de formalização para os aplicativos  de serviço de transporte é que sejam utilizados por taxistas formais que possuam a documentação em ordem na forma da lei, qualificação para a prestação do serviço e a carteira profissional emitida pela Agência Nacional de Trânsito para "transportar terceiros de um lugar para outro em troca de uma contrapartida econômica dentro do território autorizado para o seu funcionamento."

Apesar dessa medida, atualmente existem condutores que não possuem habilitação para prestar este tipo de serviço, existem sanções e as plataformas digitais não funcionam em todo o país.

No Chile, a última regulamentação específica publicada sobre o tema na região está prestes a entrar em vigor. Em 19 de abril, foi publicada a chamada 'Lei do Uber' (ou Lei nº 21.553), que visa regulamentar o uso de aplicativos de transporte de passageiros, cria cadastro de motoristas e veículos e estabelece sanções para o descumprimento.

Nesse país, a Uber também enfrenta desafios legais e regulatórios desde o início de sua operação, além de inúmeras agressões e ações judiciais de associações de táxis que sentem seus espaços invadidos.

Para Luís Parada, sócio e líder da prática trabalhista do DLA Piper no Chile, a decisão de regulamentar este serviço no início do governo anterior foi — mais do que tudo — tentar combater a informalidade, evitar a evasão fiscal e promover uma maior participação das pessoas no sistema previdenciário.

PEm 2014, o governo chileno introduziu uma legislação que estabeleceu regulamentos para serviços pagos de transporte de passageiros, incluindo essas plataformas intermediárias. Sob este regulamento, os condutores tinham de se registrar no Ministério dos Transportes e Telecomunicações para obter uma autorização especial, bem como cumprir requisitos como a posse de carteira de motorista profissional e a certidão de registo criminal.


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A necessidade de regulamentar o aspecto trabalhista no Brasil

O advogado do Ernesto Borges considera necessário não só regulamentar esta vertente em relação às plataformas de transporte como também, e com a mesma velocidade, os regulamentos civis sobre a matéria.

“Nossos Tribunais Regionais do Trabalho já se deparam com ações trabalhistas em que os motoristas de aplicativos buscam vínculo empregatício com as plataformas de transporte. Essas ações não são mais novidade para a Justiça do Trabalho", comenta surpreso porque algumas dessas instâncias, como o TRT da 1ª Região (estado do Rio de Janeiro), já entenderam a existência de vínculo empregatício entre a plataforma e o motorista.

Na ausência de legislação específica, como ocorreu, por exemplo, no caso da Lei Complementar 105/2015, que regulamentou o serviço doméstico, entre outros, ele acredita que a tendência é que aumentem as demandas na Justiça do Trabalho.

“Enquanto não tivermos uma legislação laboral voltada as novas formas de prestação de serviço, as quais se intensificaram com a pandemia, estaremos diante de uma insegurança capaz de fazer, por exemplo, com que dois irmãos que atuam, separadamente, para a mesma plataforma de transporte de passageiro se deparem com o reconhecimento de vínculo de umcom a plataforma, e o não reconhecimento de vínculo do outro, dependendo do Tribunal Regional que julgar os recursos”, alertou, deixando claro que esse é o conceito clássico de insegurança jurídica.

A iniciativa chilena

 

O Chile tem uma legislação trabalhista que regula o trabalho em plataformas digitais desde 2022. A Lei 21431 estabelece que a empresa é apenas intermediária entre a oferta e a demanda, sem manter obrigações maiores com relação ao trabalhador e os autônomos serão regidos pelas normas civis que regulam os contratos de prestação de serviços.

Essa norma segue o padrão de regulamentação administrativa, criando sanções para plataformas que operem sem estar inscritas em seu registro específico, por apresentarem informações falsas ou incompletas ao Ministério dos Transportes e permitirem a circulação de veículos sem as características estabelecidas na norma. Esta lei também incluiu um capítulo sobre o tratamento e gestão da informação.

Segundo o especialista da DLA Piper, o regime de quem trabalha para uma empresa de táxi é muito diferente do de quem decide ser motorista de plataformas digitais, uma vez que o primeiro tem um vínculo laboral que “pode ordenar os seus trabalhadores a se deslocarem para determinados setores da cidade, seis dias por semana, com horário determinado”, enquanto o motorista da plataforma "é livre para se conectar ou não se conectar, ele é livre para estar em qualquer lugar da cidade e receber ordens próximas que o algoritmo lhe oferece sem a obrigação de fazer viagens".


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"O que aconteceu aqui é que se está dando certezas à indústria e níveis de proteção aos prestadores de serviços independentes, com níveis mínimos de proteção legal, para que não fiquem desamparados."

Segundo o especialista, a experiência chilena em outros países pode ser tomada como exemplo para criar políticas públicas que busquem esclarecer a questão tributária e previdenciária sem afetar o modelo de negócios das empresas de tecnologia, mas dando garantias aos usuários e prestadores de serviços.

Costa Rica: tribunal decide a favor dos trabalhadores e determina reconhecimento de vínculo empregatício

No final de março passado, na Costa Rica, especificamente na Vara do Trabalho do Terceiro Circuito Judicial de San José, foi emitida uma sentença de primeira instância indicando que a empresa Uber mantém uma relação trabalhista com os motoristas.

“Evidencia-se o cumprimento dos requisitos essenciais para determinar que se trata de um contrato de trabalho, uma vez que o interveniente prestou um serviço de natureza pessoal em troca de remuneração, sujeito a um forte regime de fiscalização, com indícios claros de alienação”, diz a sentença. 

Não obstante essa decisão, o Poder Executivo tem promovido, por meio de Natália Diaz Quintana, chefe do Ministério da Presidência, o Projeto de Lei de Transporte Não Coletivo de Pessoas e Plataformas Digitais, que entre seus principais pontos revela um modelo de licenciamento quando cumpridos determinados requisitos e aborda a questão dos motoristas que oferecem uma "rentabilidade bruta mínima e mínima lucratividade”; segundo o texto, “desde que respeitada a margem bruta mínima por quilômetro, o preço de cada viagem será livremente determinado”.

Além disso, estabelece-se como requisito para ser motorista estar inscrito como trabalhador autônomo na Caixa Costarriquenha de Seguridade Social (CCSS), autorizando-o a estabelecer um regime especial de contribuição, como 'condutor autorizado', bem como como contribuinte no Ministério da Fazenda no âmbito da atividade econômica em questão.

As perspectivas em outros países

No início deste ano, na Colômbia, tentou-se, por meio da Superintendência de Transportes, propor uma iniciativa específica. O projeto ficou no rascunho, porque, embora o principal objetivo do documento fosse evitar o serviço de transporte em carros particulares, alegando que isso afetava a sustentabilidade dos serviços de transporte público, a oposição, formada pelo sindicato dos transportes, foi contundente com suas manifestações.

Este ponto tem sido constante. Também é possível encontrá-lo na sentença proferida pelo Tribunal Constitucional (C-428 de 2019), que decretou que “a prestação do serviço de transporte público com veículos particulares representa um perigo para pedestres e motoristas”.

A Superintendência de Indústria e Comércio da Colômbia (SIC), no final de 2019, emitiu uma ordem que proibia a Uber de prestar serviços pagos de transporte de passageiros no país, argumentando que estava competindo deslealmente com os taxistas tradicionais e não cumpria os requisitos legais estabelecidos para esse tipo de serviços. Essa medida foi anulada por um Tribunal Superior de Bogotá e até hoje a Uber oferece o serviço de aluguel de carros com motorista.

Este ano, as legislaturas de El Salvador e Panamá discutiram projetos de lei para regulamentar esse serviço. Em ambos os países, o Executivo está sendo o promotor da regulamentação.

Em El Salvador, foi discutido em janeiro, sem que uma lei fosse finalizada, e no Panamá, o projeto que substituiria o Decreto 331 é polêmico porque poderia restringir a liberdade de preços, além de impor limitações geográficas (Decreto 331, por si, excluiu pessoas não panamenhas de serem motoristas).

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