Pilar 2: Como a reforma tributária promovida pela OCDE afeta o Brasil?

Tributaristas ouvidos pela LexLatin são unânimes ao avaliar que o Pilar 1 foi praticamente deixado de lado pela própria OCDE./OCDE - Divulgação
Tributaristas ouvidos pela LexLatin são unânimes ao avaliar que o Pilar 1 foi praticamente deixado de lado pela própria OCDE./OCDE - Divulgação
Já adotado pela Coreia do Sul, o Pilar 2 do projeto BEPS (sigla em inglês para Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros) pretende acabar com a guerra fiscal entre os países.
Fecha de publicación: 21/08/2023

Os governos de Guernsey, Jersey e Ilha de Man anunciaram, em 19 de maio, uma abordagem conjunta para adoção da estrutura do Pilar 2 do BEPS 2.0 da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). As três Dependências da Coroa Britânica, que não fazem parte do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, e não pertencem à União Europeia, estão entre os países considerados por tributaristas como “paraísos fiscais”.

“Se as Dependências da Coroa não fizerem nada, outras jurisdições tributarão os lucros reconhecidos nas Ilhas. Outros países ficariam mais do que felizes em arrecadar esse imposto, aumentando as receitas em seus erários”, explica Paul Eastwood, que ocupou até 2019 um alto cargo na hierarquia do equivalente à Receita Federal do Brasil, em Jersey, e agora é sócio da KPMG.

Com as novas regras do Pilar 2, grandes multinacionais que organizam os seus negócios de forma que seus lucros num determinado país estejam sujeitos a uma taxa efetiva de imposto inferior à taxa mínima de 15% serão tributadas de maneira complementar em outros países. O objetivo é acabar com a guerra fiscal entre os estados nacionais, ao inviabilizar estratégias de planejamento tributário que exploram lacunas e incompatibilidades nas regras tributárias para transferir, artificialmente, os lucros para países com nenhuma ou baixa alíquota de impostos.


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Isso resulta em perdas anuais de receita para os governos de até US$ 240 bilhões ou 10% do imposto de renda pago pelas pessoas jurídicas, em todo o mundo.

O projeto BEPS (sigla em inglês para Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros) é uma reforma tributária internacional que começou a ser debatida em 2013 e enfrenta desafios tão grandes quanto ou maiores do que a reforma discutida há décadas, no Brasil, e está em votação agora no Congresso Nacional. Especialistas afirmam estarem diante daquela que, na definição de Roberto Salles, sócio da KPMG, é “a maior mudança nas regras internacionais de tributação com a qual a atual geração de tributaristas provavelmente vai ter que lidar na vida”.

Fim dos paraísos fiscais?

Ainda não será desta vez, contudo, o fim dos paraísos fiscais, uma vez que o Pilar 2 só se aplica a grupos multinacionais que reúnam as três seguintes características:

  • Ser uma controladora (UPE – Ultimate Parent Entity);

  • Ter pelo menos uma entidade ou estabelecimento permanente que não esteja na mesma jurisdição da UPE; 

  • E ter mais de € 750 milhões de receita consolidada.

Para todas as outras empresas, nada muda. Apesar do potencial de aumento da arrecadação, ainda não é possível calcular quanto cada país deve ganhar. A velocidade com que os países têm se preparado para as mudanças está relacionada ao que podem perder enquanto não se adaptarem.

No dia 11 de julho, 138 países, representando mais de 90% do PIB global, divulgaram uma declaração reconhecendo o progresso da reforma até aqui e se comprometendo a se adaptar a ela.


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A Coreia do Sul já implementou suas regras. A Suíça fez um referendo”, lembra Roberto Codorniz, sócio do Maneira Advogados. O referendo suíço aprovou as novas leis que entram em vigor no início do próximo ano. Outros países da Europa e o Canadá já anunciaram que pretendem começar 2024 prontos para aplicar o imposto mínimo global de 15%.

Assim, ainda que o Brasil não mudasse nenhuma regra, quando o controle de um grupo multinacional estiver localizado no país, este poderia sofrer aumento de carga tributária, porque as subsidiárias da controladora brasileira podem estar em países que já aplicam o Pilar

2. Mesmo que a controladora não esteja no Brasil, se a alíquota de imposto de renda aplicada em subsidiária no país estiver abaixo dos 15%, por conta de incentivos fiscais, a diferença pode vir a ser tributada em outro lugar.

Leonardo Andrade, sócio do Andrade Maia Advogados, revela que está “assessorando uma empresa que me perguntou qual o impacto para ela na Suíça, o que tem que fazer para mudar a apuração lá”.

Claudia Utumi, sócia do Utumi Advogados, conta que o que as empresas também já vêm fazendo é analisar os parceiros de negócios. “Se eles não tributarem, pode ser que a empresa tenha que tributar”, destaca.

Pilar 1 não foi adiante

Os tributaristas ouvidos pela LexLatin são unânimes ao avaliar que o Pilar 1 foi praticamente deixado de lado pela própria OCDE. Isso tanto pela falta de interesse dos EUA – que poderia ter mais empresas obrigadas a pagar impostos em outros países – quanto pelo potencial de arrecadação muito inferior ao do Pilar 2, calculado em até US$ 36 bilhões.


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Segundo Leonardo Andrade, enquanto o Pilar 1 é sobre “quem” e “onde”, o Pilar 2 é sobre “quanto”. Daí este tratar das “Regras Globais do Modelo Anti-Erosão da Base” (da sigla GloBe, em inglês), que são as medidas práticas para garantir a cobrança de uma taxa mínima de 15% de imposto de renda.

Brasil já vive clima de reforma tributária internacional promovida pela OCDE. A Receita Federal debate como o tema deve ser regulado. O sócio do Andrade Maia Advogados alerta que só uma alteração da Constituição, “em linha com a evolução do tema na Suíça”, permitirá a aplicação das regras do Pilar 2 no Brasil: “A alteração do artigo 43 do Código Tributário Nacional seria insuficiente para acomodar tais regras no Brasil.”

“Nós temos um consultor europeu que, neste momento, se dedica a treinar administrações fiscais de países em desenvolvimento, ao redor do mundo. Para os nossos clientes, a gente conta com ele para auxiliar, porque a complexidade é muito grande. Não é nada simples implementar o Pilar 2. O Pilar 1 é muito mais complexo. O Pilar 2 acredito que seja o único que tem chance de ir pra frente”, avalia Luís Flávio Neto, sócio do KLA Advogados e coordenador de um grupo de pesquisa do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), que há um ano se dedica a elaborar uma proposta legislativa para adoção do Pilar 2, no Brasil.

Finalizada em 2015, a primeira fase do BEPS forneceu um diagnóstico mais detalhado sobre o problema, especialmente no que diz respeito aos grandes grupos da economia digital, que podem operar de paraísos fiscais, muitas vezes mesmo sem qualquer subsidiária nos países em que faturam. O resultado foi uma série de alterações em tratados internacionais e propostas de novas legislações locais capazes de viabilizar as medidas mais efetivas, em termos de arrecadação, do BEPS 2.0.

Nova lei de preços de transferência

No Brasil, uma primeira tentativa de adaptação surgiu com a publicação da Medida Provisória (MP) 685, em 21 de julho de 2015. Ainda no Governo Dilma Rousseff, ela criava “a obrigação de informar à administração tributária federal as operações e atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo”, que os tributaristas chamam de mandatory disclosure. A MP, entretanto, acabou por não ser convertida em lei.


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Até que, em 14 de junho último, o presidente Lula sancionou a Lei 14.596, oriunda da MP 1.152, publicada ainda pelo presidente Bolsonaro, três dias antes do fim do seu mandato. Ela trata de novas regras de preços de transferência, que definem como precificar transações entre empresas de um mesmo grupo multinacional. O objetivo foi alinhar a prática brasileira com a que os países da OCDE já adotam, principalmente o Princípio de Arm’s Lenght.

Este determina que as transações de empresas controladas sejam comparadas com uma transação que acontecesse entre partes não-relacionadas.

As novas regras são um passo firme do Brasil no rumo da adoção do Pilar 2. “Dentro da Lei de Preços de Transferência, por exemplo, tem um artigo que estabelece a indedutibilidade dos royalties pagos por empresa brasileira, quando o rendimento no exterior tem o risco de não ser tributado, para evitar a dupla não-tributação. E isso tem tudo a ver com o single tax principle, que diz que o rendimento tem que ser tributado pelo menos uma vez. Já está em vigor e está alinhado com o Pilar 2”, afirma Leonardo Andrade, do Andrade Maia Advogados.

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