Por que estão todos contra a MP das Fake News?

Medida buscou atender a base mais aguerrida de Bolsonaro e agora os outros poderes ameaçam derrubá-la/ Marcos Corrêa/PR
Medida buscou atender a base mais aguerrida de Bolsonaro e agora os outros poderes ameaçam derrubá-la/ Marcos Corrêa/PR
Proposta do governo federal de restringir retirada de conteúdo em redes sociais foi devolvida pelo Congresso e suspensa pelo STF.
Fecha de publicación: 14/09/2021

A Medida Provisória 1.068, que o presidente da República Jair Bolsonaro editou na semana passada, restringe as possibilidades de que plataformas digitais como o Twitter, Facebook, Instagram e Google removam o acesso a conteúdos que violem suas diretrizes. A publicação, em 6 de setembro, veio como um pequeno presente de Bolsonaro à sua base de apoiadores horas antes da maior manifestação de seu governo, realizada no feriado do dia seguinte.

Passada uma semana dos atos antidemocráticos e oito dias da edição da MP, o texto do Executivo virou água: o presidente do Congresso Nacional, o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) promoveu a “devolução sumária” do texto ao Palácio do Planalto, por considerar que parte das propostas que alteram o Marco Civil da Internet são inconstitucionais; na mesma hora, a ministra Rosa Weber, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou a suspensão dos efeitos da proposta, atendendo aos pedidos da PGR (Procuradoria-Geral da República).


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É difícil imaginar que a resistência contra ela fosse convertida em acordo para transformá-la em Lei. O maior temor de analistas o é que, em nome da liberdade, o texto traga uma ação estatal indesejada: “Esse ganho de influência do governo sobre o ambiente digital não protege, antes ameaça à liberdade de expressão”, argumenta Nathalie Fragoso, advogada no Davi Tangerino e Salo de Carvalho Advogados.

Lexlatin mostrou em maio os planos do governo em editar a medida, que na época ainda passava por análise entre os ministérios do gabinete de Jair Bolsonaro. O texto, ao ser publicado, trouxe um alento à base mais radical do presidente Jair Bolsonaro, que cobrava uma ação do governo sobre o que consideravam “censura” de plataformas digitais. 

Uma das alterações cria um novo artigo 8-A no Marco Civil, buscando impedir a “adoção de critérios de moderação ou limitação do alcance da divulgação de conteúdo que impliquem censura de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa”.

Na Exposição de Motivos da MP, ficou mais claro a justificativa do governo para adotar a proposta. “A previsão abstrata desses direitos e garantias [no Marco Civil da Internet] tem se mostrado insuficiente para evitar que um número crescente de brasileiros tenha suas contas ou conteúdos removidos de maneira unilateral, arbitrária e imotivada por provedores de redes sociais, que, ao assim agirem, violam frontalmente o ordenamento jurídico brasileiro”, indica o autor da peça, o ministro do Turismo, Gilson Machado Neto. “Em grande parte dos casos, os usuários afetados por decisões arbitrárias de moderação de conteúdo não encontram, junto ao provedor, recurso célere para impedir ou fazer cessar a violação de seus direitos.”

O texto chegou a apontar a Lei de Direitos Autorais para garantir o direito de quem publica conteúdo em redes sociais, assim como uma possível indenização caso o conteúdo saia do ar. 

Em tese, a medida garantia maiores direitos de um produtor de conteúdo contra uma empresa que pode, arbitrariamente, escolher retirar o conteúdo do ar, prejudicando investimentos feitos pelo seu produtor. Na mesma medida, a retirada de conteúdos com informações falsas ou enganosas sobre temas sensíveis - como, por exemplo, relativos às eleições ou às vacinas - fica comprometida.

As críticas vieram de todos os lados. O Comitê Gestor da Internet (CGI), que gere iniciativas relacionadas à Internet e tem membros apontados pela própria Presidência da República, indicou que a proposta tem riscos ao mexer em legislações já vigentes. 

“[O CGI alerta para] potenciais consequências de insegurança jurídica, que poderão minar a inovação e prejudicar a atuação dos atores privados na Internet, com consequentes efeitos também para os usuários”, indica o Comitê, que ainda fala que “limitações excessivas à atuação dos provedores poderão ocasionar efeitos indesejados para a usabilidade geral da rede e para a proteção de usuários, além da inevitável sobrecarga ao já congestionado Poder Judiciário.”

O procurador-geral da República, Augusto Aras, deu o passo mais contundente contra o texto: ao responder a cinco ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) que tramitam no STF contra a proposta, Aras pede que a Corte suspenda os efeitos da MP, até que a corte defina se ela é constitucional ou não. 

“A alteração legal repentina do Marco Civil da Internet pela MP, com prazo exíguo para adaptação, e previsão de imediata responsabilização pelo descumprimento de seus termos geram insegurança jurídica para as empresas e provedores envolvidos”, advertiu Aras. “Nesse cenário, parece justificável, ao menos cautelarmente e enquanto não debatidas as inovações em ambiente legislativo, manterem-se as disposições que possibilitam a moderação dos provedores do modo como estabelecido no Marco Civil da Internet, sem as alterações promovidas pela MP 1.068, prestigiando-se, dessa forma, a segurança jurídica, a fim de não se causar inadvertida perturbação nesse ambiente de intensa interação social.”

A pressão do Judiciário é diferente da pressão que o Congresso Nacional pode fazer - e, no fim da noite, ambas geraram resultado: enquanto Rosa Weber suspendeu a MP em caráter liminar, Rodrigo Pacheco devolveu a proposta. “A edição da Medida Provisória nº 1.068, de 2021, ato normativo com eficácia imediata, ao promover alterações inopinadas ao Marco Civil da Internet, com prazo exíguo para adaptação e com previsão de imediata responsabilização pela inobservância de suas disposições, gera considerável insegurança jurídica aos agentes a ela sujeitos”, escreveu Pacheco no ato que justificou sua devolução. Com isso, os efeitos da MP foram encerrados, após oito dias de tramitação.

Isso já aconteceu com Bolsonaro, quando a então MP 979, que tratava das indicações de reitores das universidades federais, foi devolvida pelo então presidente, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Antes, MPs em 1989, 2008 e 2015 já haviam sido devolvidas.

Rodrigo Pacheco, que sucedeu Alcolumbre na presidência do Senado e do Congresso, prometeu durante o final de semana uma avaliação “técnica e criteriosa” sobre o tema até o início desta semana, mas, até o fechamento desta edição, não tinha se manifestado.

Nathalie lembra que a MP não atende requisitos básicos, como a urgência e a relevância necessárias para a edição de medidas deste tipo. A ação, avalia, poderia ter resultados contrários: “A MP desprotege usuários online e não garante a liberdade de expressão”, aponta a advogada. “Discurso de ódio, desinformação, violência online estão entre os principais desafios colocados na governança de ambientes online, cujo enfrentamento seria duramente comprometido.”  

Questionada sobre o porquê desta proposta ter tantos posicionamentos contrários, Marcela Mattiuzzo, sócia no VMCA Advogados, aponta que a MP abre brecha para uma ação maior do Estado na regulamentação da liberdade de produção de conteúdo. 

“É importante esclarecer que moderação de conteúdo em si não é algo totalmente inusitado, até porque as próprias plataformas têm seus próprios critérios de definição de conteúdo permitido e proibido”, ressalta a advogada. “Mas a MP cria um modelo em que é o Executivo que define o que pode e o que não pode ser veiculado, na medida em que ele determina o que é justa causa e inclusive é uma autoridade administrativa (que, vale dizer, não fica claro qual é ou será) que aplica sanções pelo descumprimento das regras”. 


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Ao agir para supostamente “proteger” a liberdade de expressão, como tanto prega Bolsonaro, o texto vai além do que prevê as propostas em outros locais mundo afora - onde predomina o entendimento de que a plataforma só passa a ser responsável pelo dano causado pela publicação se não retirar o acesso ao conteúdo após ordem judicial.

“A MP vai muito além disso, ela gera regras sobre o que pode ser retirado, não só sobre o que gera responsabilização. Ou seja, na prática ela determina quais casos serão considerados ‘válidos’ de serem debatidos e quais não”, indica Marcela. Uma violação de honra teria de ser julgada não mais pelo Judiciário, mas sim pelo Executivo.

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