Prêmio Nobel e direito à informação: o futuro da liberdade de expressão

Segundo o Comitê Nobel, o prêmio foi atribuído "pelos esforços de salvaguarda da liberdade de expressão, pré-condição para a democracia e paz duradouras"/Fotos Públicas
Segundo o Comitê Nobel, o prêmio foi atribuído "pelos esforços de salvaguarda da liberdade de expressão, pré-condição para a democracia e paz duradouras"/Fotos Públicas
Especialistas avaliam o que muda no combate às fake news depois do Nobel da Paz para dois jornalistas.
Fecha de publicación: 14/10/2021

Nos últimos anos, o mundo tem presenciado mudanças na maneira de produção e circulação da informação. As novas mídias e redes sociais alteraram a relação de forças e as regras quando o assunto é a liberdade de expressão. 

Por conta disso, o padrão de produção da comunicação já não é mais o mesmo, assim como a confiança na divulgação da informação, especialmente as que têm relevância para a opinião pública. Se de um lado os meios de produção estão mais acessíveis a uma parcela significativa da população mundial e brasileira, de outro há a concentração destas novas mídias na mão de pouquíssimas empresas, como o Google e o Facebook. 

Essas plataformas, que estão no topo da lista das grandes corporações mundiais,  têm um poder que começa a ser regulado e limitado por novas legislações. A necessidade de mudança visa garantir a circulação e a pluralidade da informação e limitar o abuso de poder de quem detém e controla essas plataformas. 


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É nesse contexto em que a escolha do Prêmio Nobel da Paz de 2021 dado à jornalista filipina Maria Ressa e ao jornalista russo Dmitry Muratov dá um recado a quem tenta limitar o direito á informação. Segundo o Comitê Nobel, o prêmio foi atribuído "pelos esforços de salvaguarda da liberdade de expressão, pré-condição para a democracia e paz duradouras". 

Maria Ressa é cofundadora e diretora-executiva do Rappler, uma empresa de mídia digital de jornalismo investigativo nas Filipinas. "Ressa usa a liberdade de expressão para expor o abuso de poder, o uso da violência e o crescente autoritarismo em seu país natal", declarou o Comitê.

Dmitry Muratov é editor-chefe do jornal russo Novaya Gazeta, que realiza investigações sobre irregularidades e corrupção no país e cobriu intensamente o conflito na Ucrânia. O jornal já teve seis jornalistas assassinados, todos homenageados por Muratov ao receber o prêmio. 

O Comitê argumentou que a liberdade de expressão é uma condição para a democracia e a paz duradoura. Assim, os vencedores do prêmio “são representantes de todos os jornalistas que defendem esse ideal em um mundo em que a democracia e a liberdade de imprensa enfrentam condições cada vez mais adversas”.

Na América Latina, principalmente durante a crise sanitária, houve restrição da liberdade de imprensa nos países. De acordo com um relatório do Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ), na Bolívia, Brasil, El Salvador e Peru medidas de emergência em resposta à Covid-19 restringiram a capacidade da mídia de informar livremente e a capacidade do público de acessar informações. 

Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa de 2021, editado pelo Repórteres Sem Fronteiras, revelou uma deterioração geral da situação na América Latina. “Salvo raras exceções, o ambiente de trabalho dos jornalistas, já complexo e hostil antes da crise do coronavírus, piorou ainda mais”, afirma a organização. A região das Américas registrou a maior deterioração dos índices regionais (+2,5%).

O país latino-americano melhor colocado na classificação é a Costa Rica que ficou em 5º lugar a nível global. No entanto, a maioria dos países receberam o índice vermelho, o que causa preocupação entre os jornalistas. Dentre os piores índices estão Cuba (171º de 180 países), Venezuela (148º), Honduras (151º) e Nicarágua (121º).

Para os especialistas ouvidos por LexLatin, o que está sob ataque hoje em todas as regiões do planeta é a democracia e, junto com ela, a liberdade de imprensa. “Isto não é de hoje. No Brasil, quando tivemos a eleição para o segundo turno, por exemplo, várias universidades foram invadidas, ocupadas por policiais. Os policiais entravam, dissolviam reuniões, recolhiam faixas, proibiam encontros. Era um juiz de instâncias inferiores, de primeira instância, que estava dando liminares que autorizavam censura, cortar reunião, retirar faixa, entrar em universidade. Foi quando a ministra Cármen Lúcia tomou uma decisão muito importante revogando todas essas decisões”, afirma Celso Fernandes Campilongo, professor da Faculdade de Direito da USP (FDUSP).


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Para o especialista em filosofia e teoria geral do Direito muitos governos, entidades e pessoas não estão mais levando a sério algumas conquistas importantes das democracias liberais e representativas. “Como, por exemplo, a liberdade de informação, a liberdade do exercício de profissão e a liberdade de opinião. Nós vivemos um momento autoritário e alguns desses grupos acoplam o fato de que eu tenho uma fragmentação muito grande na produção da informação associada a essa onda reacionária, conservadora, contra as liberdades. Acho que esse conjunto cria uma situação preocupante para a liberdade de imprensa”, analisa. 

Para Pierpaolo Cruz Bottini, professor de direito penal da FDUSP, o reconhecimento da relevância da liberdade de expressão para a paz mundial é um alerta para todos aqueles que militam contra sua limitação ou supressão, em especial governos autoritários. “Inclusive em países democráticos que, pelo assédio judicial ou uso do Estado policial, ameaçam e vilipendiam a dignidade da pessoa humana dos jornalistas e de todos os demais profissionais que atuam, direta ou indiretamente, no segmento, inclusive os das redes comunitárias e sociais”, diz.

Fato é que o jornalista, por natureza, investiga fontes e a veracidade de fatos. Quem defende a liberdade de expressão acredita que, no ambiente de propagação de desinformação, esse profissional acaba sendo visto como um incômodo, porque ele é a pessoa que vai ser responsável por desconstituir as notícias falsas. “Esse desconforto vai se intensificar na medida em que, quanto mais desinformação for espalhada, maior vai ser a importância do papel do jornalista e o incômodo que ele pode causar na contestação desses fatos inverídicos que são divulgados sob a ótica de uma liberdade de expressão falsa”, explica Thiago Sombra, sócio de compliance e ética corporativa do escritório Mattos Filho

O advogado defende que a chamada liberdade de expressão não dá o direito de compartilhar todo e qualquer conteúdo sem a verificação das fontes e da legitimidade delas. “Acho que hoje o que a gente vivencia é uma confusão entre liberdade de expressão e direito à informação. Direito à informação é direito à informação precisa, fidedigna, lastreada em fatos concretos. Nós nunca vivenciamos tanto uma divergência entre esses direitos como nesse momento em que nós vivemos hoje”, diz. Sombra avalia que o papel do jornalista sempre foi o de contestar fatos que são divulgados sem uma fonte precisa, sem uma fidedignidade.

No Brasil o Judiciário tem atuado em algumas tentativas de subverter essa relação do direito à informação verdadeira. Uma delas foi contrária à medida provisória decretada pelo presidente Jair Bolsonaro. Em setembro, ele tentou alterar o Marco Civil da Internet para deixar mais difícil a exclusão de perfis nas redes sociais e a retirada de conteúdos publicados na internet.

A medida foi tomada depois que o STF ordenou a exclusão de páginas de apoiadores do presidente, que incentivavam atos violentos contra ministros do STF, e também após o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinar que plataformas digitais não repassassem dinheiro a sites de fake news, muitos deles coordenados por bolsonaristas. Em resposta à edição da norma, o STF suspendeu a tramitação da Medida Provisória por considerá-la inconstitucional. 

Para os especialistas, destacar o trabalho da imprensa e chamar a atenção para a importância desse trabalho, como fez o Prêmio Nobel este ano, dá um recado importante aos governos autoritários no Brasil, América Latina e em várias partes do mundo.

“Nós vivemos em uma sociedade complexa, com diversidade, pluralismo, diferentes opiniões, diferentes preferências sexuais, diferentes etnias. Existe uma pressão de alguns setores que não toleram viver com a complexidade, querem reduzir esse excesso de possibilidades de escolha a algumas poucas escolhas. São geralmente as posturas autoritárias que não admitem a diversidade, não admitem outras preferências que não sejam aquelas muito padronizadas. Mas isso tudo me parece incompatível com o mundo moderno e não deve durar muito”, avalia Celso Fernandes Campilongo. 


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