Veículos elétricos: a estratégia dos chineses que promete mudar o setor automotivo brasileiro

Segundo pesquisa realizada pelo IBGE, no final de 2022 o Brasil contava com uma frota de 115 milhões de veículos, a 6ª maior do mundo./ Agência Brasil.
Segundo pesquisa realizada pelo IBGE, no final de 2022 o Brasil contava com uma frota de 115 milhões de veículos, a 6ª maior do mundo./ Agência Brasil.
Invasão de montadoras impacta mercado e afeta preço dos automóveis no país. Fabricantes tradicionais ainda esperam aumento das vendas de elétricos.
Fecha de publicación: 19/09/2023

O tsunami que impactou o mercado brasileiro começou ainda na pandemia: desde 2021 três montadoras chinesas fincaram os pés por aqui. Juntas, GWM, BYD e Higer Bus anunciaram investimentos de R$ 20 bilhões na construção de fábricas e produção local. Uma quarta marca, o grupo XCMG, está considerando iniciar operações no país até 2025. Há também estudos avançados para a fabricação de componentes.

O motivo desse avanço em pouco tempo é simples: empresas chinesas estão ansiosas para expandir seus negócios em regiões onde a eletrificação de veículos ainda está em estágios iniciais. O Brasil é visto como um mercado estratégico não apenas no âmbito nacional, mas em toda a América Latina.

Segundo pesquisa realizada pelo IBGE, no final de 2022 o Brasil contava com uma frota de 115 milhões de veículos, entre automóveis, caminhões, ônibus, motocicletas e outros. O país ocupa a 6ª posição no mercado global de vendas.

A estratégia dos asiáticos é agressiva. A meta é implantar em pouco tempo produção local de modelos eletrificados, nacionalização de componentes, criação de centros de pesquisa, além de oferecer uma gama mais ampla de serviços aos consumidores.

A entrada dos chineses, segundo os especialistas, pode mudar o ritmo de eletrificação do transporte no Brasil e demonstra o potencial do país como parceiro estratégico internacionalmente quando se fala em sustentabilidade.

“Apesar de o país possuir um mercado ainda incipiente e que carece da infraestrutura necessária para comportar o carregamento dos veículos, os chineses estão apostando nos carros populares, barateando o custo dos carros elétricos. Assim, a tendência é que consigam imprimir maior dinamismo a esse mercado”, diz Stefanie Ólives, advogada da área de Infraestrutura e Energia do Machado Meyer Advogados.

Esse interesse chinês no mercado brasileiro tem relação com o mercado interno e com o tipo de economia, voltado por aqui mais para o consumo do que para exportações. “Essa é uma maneira de a China também substituir o uso do petróleo, porque ela não é autossuficiente no combustível. Ela investe em tecnologias que fazem com que a dependência dela por petróleo fique cada vez menor. Há também o lado geopolítico. Eles sabem que o Brasil é a principal porta de entrada na América do Sul e vêm para cá como maneira de exercer o soft power: trazem recursos e investimentos para que o Brasil tenha uma neutralidade pró China. O chinês não vem só pelo lucro. Se conseguir ter essa vanguarda, essa vantagem comparativa de produzir no Brasil, isso tende a acelerar outros investimentos”, analisa o economista Roberto Dumas. Só entre 2010 e 2022 os chineses investiram pelo menos US$ 90 bilhões no Brasil. 


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O que têm feito as empresas que estão chegando?

A fabricante de automóveis chinesa BYD (Build Your Dreams, que significa "Construa Seus Sonhos") anunciou em julho o investimento de R$ 3 bilhões na Bahia, em três unidades em Camaçari, a 50 quilômetros de Salvador.

O complexo industrial terá três instalações distintas: a primeira será dedicada à produção de chassis destinados a ônibus e caminhões elétricos. Outra unidade se concentrará na fabricação de veículos híbridos e elétricos, com uma capacidade inicial estimada de 150 mil unidades por ano, podendo aumentar para até 300 mil unidades. A terceira terá como foco o processamento de lítio e ferro fosfato, atendendo à demanda internacional. Para isso, fará uso da infraestrutura portuária já existente na região.

Em agosto de 2021, a Great Wall Motors (GWM) adquiriu as instalações da Mercedes-Benz em Iracemápolis, no interior de São Paulo, depois que o grupo alemão desistiu de manter a produção local de carros de luxo. Com um investimento de R$10 bilhões até 2026, a empresa está adaptando a fábrica, que já era considerada moderna, para a fabricação de modelos híbridos flex, híbridos plug-in e, no futuro, veículos elétricos.

A planta está passando por melhorias, incluindo a instalação de novos equipamentos nacionais e importados, e sua capacidade de produção será ampliada de 20 mil para 100 mil carros por ano. O projeto está sendo liderado por Frank Haegele, ex-chefe de operações da Mercedes-Benz, que foi trazido de volta pela GWM. A produção em Iracemápolis deve começar em maio de 2024, provavelmente com o lançamento de uma picape de porte médio. Se os planos se confirmarem, será o primeiro veículo desse segmento a operar com tecnologia de motor a combustão e bateria. 

Em agosto, a GWM lançou seu primeiro modelo importado no Brasil, o SUV Haval H6. O veículo se destacou pelo preço competitivo em relação aos concorrentes e pela autonomia de 170 km no modo elétrico do híbrido. A empresa firmou ainda um acordo com a agência de fomento Desenvolve SP para realizar testes com caminhões a hidrogênio no estado de São Paulo. No entanto, ainda não há planos para a produção local de veículos pesados. Os estudos para o futuro estão voltados para carros elétricos, inicialmente para atender a nichos como aplicativos e frotas. 


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As montadoras chinesas vêm avançando com uma estratégia que faz sentido para o consumidor: oferecer um pacote de benefícios que atrai uma fatia do mercado que já está migrando para veículos híbridos ou totalmente elétricos, mas que não prioriza marcas consideradas mais tradicionais.

“Preços mais baixos, design atraente, alta tecnologia e boa performance das baterias. A diversificação desse mercado com a entrada de novos concorrentes, sem dúvida, tem gerado efeitos econômicos importantes, na medida em que isso aumenta a oferta, a necessidade de mais qualidade, a competição e as opções acessíveis para os consumidores”, afirma Ricardo Marletti Debatin da Silveira, sócio do CGM Advogados.

Ônibus e caminhões elétricos

A maior fabricante global de ônibus, a Higer Bus, se interessou pelo mercado brasileiro devido à alta dependência do país por ônibus para o transporte público, uma vez que as cidades brasileiras não têm a mesma extensa rede de metrô e ferrovias encontrada em algumas partes da Europa e nos Estados Unidos. A empresa já importa ônibus elétricos em parceria com a empresa brasileira TEVX.

No entanto, adaptar os ônibus às normas brasileiras exigiu modificações em cada modelo. Os ônibus elétricos, conhecidos como Azuri, e com a marca TVEX Higer, têm um custo de R$ 2,8 milhões, com as baterias representando 46% desse valor. Para a produção local, que começará no próximo ano, a empresa planeja investir inicialmente US$ 10 milhões em instalações em Fortaleza (CE).

A Higer Bus adotará o sistema chamado PKD, cuja estrutura dos veículos virá pronta da China e no Brasil serão instalados itens importados, como eixo, rodas, motor e baterias. Além disso, a empresa está de olho no mercado de ônibus a hidrogênio, que já está disponível na China. Já se vislumbra a necessidade de uma segunda planta, que será instalada em São Paulo ou no Rio de Janeiro, com um investimento potencialmente maior.


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A XCMG, que já é conhecida por sua atuação no Brasil na linha de máquinas e equipamentos desde 2004, também tem planos de entrar no mercado de caminhões elétricos rodoviários de grande porte a partir de 2025. Eles importaram caminhões elétricos da China, o E7-49T, que é o primeiro desse tipo no Brasil, com capacidade de transporte de 49 toneladas e autonomia de 150 quilômetros. A empresa planeja nacionalizar a produção desses caminhões conforme a demanda do mercado e crescer nos próximos anos. Também está considerando a possibilidade de estabelecer um centro de pesquisa e desenvolvimento no país.

Apesar da grandiosidade do mercado brasileiro, é fato que produzir, importar e operar por aqui não é uma tarefa simples. Os desafios na esfera legal, especialmente nas áreas tributária, aduaneira, ambiental e regulatória, são múltiplos. O nosso sistema tributário é um dos mais complexos do mundo, o que demanda muito estudo, planejamento e coerência na tomada de decisões para se evitar riscos e pesadas contingências que gigantes internacionais já experimentaram no Brasil. 

“Além dos aspectos legais e tributários, há alguns entraves que deverão ser solucionados por todos os players do setor, como a dificuldade de abastecimento dos veículos fora das grandes cidades, o alto custo dos veículos e de baterias eficientes, e a questão do descarte limpo das baterias a longo prazo, pois não adiantaria criarmos uma solução e, concomitantemente, um novo problema ambiental”, avalia Ricardo Marletti Debatin.

Descarbonização

Até então, a aposta do governo brasileiro quando se fala em descarbonização dos transportes vem sendo os biocombustíveis, em virtude da infinidade de recursos naturais que o Brasil dispõe para exploração dos combustíveis alternativos.

“Exemplo disso é a proposta de Lei apresentada pelo Governo Federal para incentivar o uso dos chamados 'Combustíveis do Futuro', que, dentre outros objetivos, pode imprimir maior velocidade à transição do modelo de transportes no Brasil. A presença dos chineses pode mudar esse cenário”, afirma Ana Karina Souza, sócia da área de Infraestrutura e Energia do Machado Meyer.


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Os chineses também vêm se destacando quando se fala em investimentos em baterias para veículos elétricos, viabilizando o uso prolongado desses veículos e minimizando os desafios relacionados à infraestrutura, o que pode ser outra vantagem na corrida tecnológica desse mercado.

Um ponto de atenção é o risco de deslocamento das emissões de poluentes. Por exemplo, na China, mais de 80% da energia é gerada a partir de combustíveis fósseis. Assim, a eletrificação da frota, ao aumentar a demanda de energia elétrica, transferiu o uso de gasolina e emissão de poluentes nos centros urbanos para a geração de energia a carvão, aumentando as emissões de CO².

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