Daniela Borges: a primeira presidente mulher em 90 anos de OAB Bahia

Daniela Borges
Daniela Borges
"Ao estarmos nos espaços de poder podemos ser agentes de transformação na construção de políticas que garantam mais oportunidades para as mulheres, menos preconceito e menos violência".
Fecha de publicación: 30/03/2022

A advogada Daniela Borges fez história na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) seccional da Bahia. Em 90 anos de existência da entidade, ela foi a primeira mulher a ocupar a presidência, algo que ela comemora, mas que também mostra as dificuldades que as mulheres enfrentam no mercado jurídico para ocupar cargos de poder. Essa é uma história que começa a mudar ainda a passos lentos: das 27 seccionais do país, apenas 5 são presididas por advogadas. 

Na Bahia, ela não está sozinha na chapa que administra a Ordem desde janeiro e é responsável por 36 subseções do interior do estado. Ao lado de Daniela, outra mulher ocupa a vice-presidência da seccional, a advogada Christianne Gurgel. Também compõem a diretoria Esmeralda Oliveira, secretária-geral, Ubirajara Ávila, secretário-geral adjunto, e Hermes Hilarião, tesoureiro.  

Em seu discurso de vitória e de posse, Daniela Borges homenageou Maria Quitéria, Luísa Marin e todas as advogadas que vieram antes dela e pavimentaram o caminho para que outras mulheres ocupem cargos de liderança. 


Leia também: Patrícia Vanzolini: "A OAB parou no tempo"


Advogada, que vai administrar a seccional pelos próximos três anos, é tributarista há mais de 20 anos, além de professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Faculdade Baiana de Direito. Antes de ocupar a presidência, ela foi conselheira seccional e diretora tesoureira. Atualmente, preside a Comissão Nacional da Mulher advogada e é conselheira federal.

Em conversa com LexLatin, Daniela Borges fala das dificuldades que as mulheres ainda enfrentam no mercado jurídico brasileiro. 

Luciano Teixeira: Como é que está sendo para a Sra ser a primeira presidente de uma OAB regional, que existe há 90 anos, e só tinha presidente homem até então?

Daniela Borges: Para mim é uma honra, sobretudo porque fui eleita com muitas mulheres. Quando olhamos a história da OAB no Brasil, só dez mulheres tinham conseguido em 92 anos presidir seccionais, considerando os 27 estados. Era muito pouco. E mesmo assim, essas mulheres chegaram sozinhas. Elas eram as únicas mulheres, praticamente, acompanhadas de muito poucas.

Fui eleita num momento de grande transformação da OAB e isso me dá muita alegria. Tenho na diretoria três mulheres de cinco pessoas, incluindo e a nossa vice presidente. É a primeira vez na história do Brasil que uma OAB tem mulher presidente e vice. Não deveria causar surpresa, não deveria ser algo para marcar. É uma honra chegar à presidência com essa história de luta de tantas mulheres, representando uma conquista coletiva.

Luciano Teixeira: Quais são os primeiros desafios que a Sra está enfrentando?

Daniela Borges: Enfrentamos um movimento de tribunais que já estavam no processo de reabertura, de repente retrocedendo para fechamentos e fechamentos condicionados, agendamento, o que causou um grande retrocesso no movimento de retomada das atividades do Judiciário aqui na Bahia. Veja que o Judiciário fechou no início da pandemia e foi um dos que reabriu por último.

Daniela Borges

Aqui a reabertura começou em outubro e novembro e de repente já tinha de novo um fechamento. Desde janeiro estivemos trabalhando para que isso não acontecesse, para reverter. O Tribunal Regional do Trabalho (TRT) reabriu no dia 3 de março. Agora, o Tribunal de Justiça (TJ) da Bahia no dia 21. Estamos também com esse trabalho no Tribunal Regional Federal (TRF). Os problemas estruturais do judiciário baiano são um outro desafio imenso.

O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, especialmente, tem problemas estruturais de falta de magistrados, de servidores, de oficiais de justiça, sobretudo no interior do estado. E isso termina resvalando na morosidade do Judiciário baiano que é notoriamente conhecida em nosso país.

Luciano Teixeira: A senhora tem um exemplo de tempo de julgamentos de processos e outros reflexos dessa morosidade?

Daniela Borges: Chegou à OAB da Bahia um processo que dura 37 anos. Isso chama a atenção pelo tempo do processo. A Comissão de Celeridade Processual tem um projeto específico, que está sendo lançado, o SOS morosidade. Aqui na Bahia há dificuldade de ter decisões em medidas de urgência.

Um processo que você faz um pedido de liminar, que é o pedido de urgência, o magistrado demora quatro anos para despachar. E aí tem o despacho: perda de objeto. É evidente que teve perda de objeto. Depois de quatro anos, a medida era de urgência, com certeza o objeto se perdeu, porque por alguma razão aquela urgência já não existe mais. Só que isso significa o direito das partes nos processos que não vão efetivamente tendo ali a resposta do Judiciário, a prestação jurisdicional em relação às demandas que são apresentadas.

Luciano Teixeira: Isso acaba gerando impunidade?

Daniela Borges: Gera impunidade, gera custo para a economia, porque a morosidade termina prolongando os conflitos e trazendo custos de maneira generalizada para o poder público e para as partes. Sem dúvida é algo que termina tendo um outro problema, que chega para advocacia, que é a violação de prerrogativas. Porque diante dessa má prestação jurisdicional aqui na Bahia, o advogado precisa estar o tempo inteiro tentando falar na vara, tentando tratar com o magistrado e aí, por exemplo, a nossa prerrogativa - que é um direito da advocacia falar ou despachar com o magistrado - é reiteradamente violada em nosso Estado.

Sempre digo que quando queremos tratar com o magistrado não é sobre uma questão nossa, é sobre os processos, é sobre o direito das partes. As prerrogativas da advocacia não servem à advocacia. Elas servem à ampla defesa ao contraditório, aos direitos daqueles em nome dos quais os advogados atuam nos processos.

Luciano Teixeira: O déficit hoje no estado é de quantos juízes, de quantos servidores? A Sra tem ideia de quanto leva hoje um processo para ser julgado, em média, na Bahia?

Daniela Borges: O que eu posso te dizer é que faltam mais de cem magistrados em número oficiais, mas o número é muito maior. Você tem lá o número que falta, porque você não tem um juiz naquela vara. Só que a tem vara aqui na Bahia com 30 mil processos. Então, na verdade, era para já terem sido criadas mais duas ou três varas.

O Brasil é um país muito plural, muito diverso. Quando olhamos a própria Bahia, tem uma pluralidade, uma diversidade, e quem sofre mais esses impactos é o interior. O magistrado vai sendo promovido e as varas que vão ficando sem magistrados e servidores, em regra, são justamente aquelas do interior. Esses problemas atingem sobretudo as partes de um processo: cidadãos e cidadãs que terminam perdendo a credibilidade e a confiança na possibilidade de encontrar uma resposta em tempo razoável no Judiciário. Principalmente aqueles que mais precisam.

A OAB é a favor de uma justiça e prestação jurisdicional mais efetiva. Desde que nós assumimos aqui em 1º de janeiro estamos fazendo um convite ao Judiciário, ao Ministério Público, à Defensoria, para que se construa o mesmo propósito de uma melhor prestação jurisdicional. Os problemas são estruturais, de morosidade e ineficiência. E que olhemos para este problema, com data, e mude essa realidade.

Luciano Teixeira: Que movimento permitiu, depois de 90 anos, que três mulheres ocupassem cargos na direção da Bahia? O que a senhora acha que mudou? Quais são esses novos tempos?

Daniela Borges: Promovemos muitas lutas internas dentro do sistema da OAB. Nós temos eleição a cada três anos. No triênio passado, a OAB da Bahia já tinha a paridade de gênero no conselho, porque temos a diretoria, mas também um órgão deliberativo. Como se fosse o "Legislativo". Nós já tínhamos nos três anos da gestão anterior a paridade de gênero: 50% de homens e 50% de mulheres. E mulheres em diversos espaços de liderança dentro da gestão. Nós tínhamos um presidente homem, mas mulheres na metade de todos os órgãos e com liderança.

Luciano Teixeira: A Sra acha que isso abriu caminho, então?

Daniela Borges: É muito importante. Eu não teria passado a presidir a Comissão Nacional da Mulher Advogada. Em uma conferência, uma conselheira federal apresentou a proposta de paridade na mudança das normas das eleições da OAB. Eu presidindo a comissão pude liberar esse processo de defesa da paridade de gênero no Brasil todo.

Nós fizemos muitos movimentos no Brasil todo defendendo a paridade de gênero nas OABs. Sempre digo que quanto mais mulheres estão nos espaços, naturalmente mais mulheres nós teremos, porque há mulheres muito preparadas e competentes. O que às vezes falta é o espaço e a possibilidade de se dar visibilidade a esse trabalho.

Quando temos esses movimentos de paridade, chamamos a atenção para os talentos, as potências femininas que nós temos no sistema OAB. Hoje as mulheres são mais da metade dos advogados do Brasil. Na Bahia nós somos mais da metade e entre os advogados com até cinco anos, as mulheres são 64%. Eu vejo que a gente chega com essas grandes mudanças e não apenas a paridade de gênero, também as cotas raciais.

Estamos assistindo a uma grande transformação no sistema de eleições da OAB, trazendo maior representatividade para nossa instituição. Isso é um solo fértil para que tenhamos cada vez mais mulheres presidentes de seccionais, porque se nós temos mais mulheres ocupando cargos, você começa a ver o trabalho dessas mulheres. E aí com essa visibilidade você torna mais fácil e possível que mais mulheres alcancem esse espaço.

Luciano Teixeira: Qual a importância do seu exemplo na liderança para outras advogadas baianas, nordestinas e brasileiras?

Daniela Borges: A representatividade é muito importante, porque sobretudo inspira outras mulheres. Um dos grandes desafios da sociedade marcada pelas desigualdades como a nossa é essa construção de que as mulheres podem menos. É uma construção cultural e social que vem de muito antes de nós. Quando vemos mulheres chegarem nos espaços de poder, vemos que é possível, as mulheres podem.


Veja também: Gabriela Manssur: "Chega de pagar com a própria vida pra ser mulher"


Tenho um amigo que conta a história de que a filha dele queria ser advogada e que agora não quer mais ser advogada, ela quer ser presidente da OAB. Quando pensamos na realidade hoje, vemos muitas mulheres que abrem mão de seus sonhos ao longo da sua vida, que sequer se sentem a possibilidade de sonhar. Quando vemos as mulheres ocupando espaços e realizando grandes conquistas, estamos dizendo que é possível para todas. E aí fico pensando sobretudo também para as crianças, meninas, adolescentes que elas podem sonhar e que elas podem transformar em realidade esse sonho.

Daniela Borges

Ao estarmos nos espaços de poder podemos ser agentes de transformação na construção de políticas que garantam mais oportunidades para as mulheres, menos preconceito e menos violência. Essa responsabilidade de poder transformar esses espaços e realidades que encontramos hoje de teto de vidro, de diferença de remuneração, de assédio, de preconceitos, para que possamos ter de fato, não só uma advocacia mais igualitária, mas uma sociedade mais igualitária.

Essa é também a importância das mulheres estarem nos espaços de decisão, como hoje nós temos a mim e a Patrícia [Vanzolini], na presidência da OAB de São Paulo, e mulheres liderando empresas, escritórios e países. Vemos o exemplo da presidente da Nova Zelândia [Jacinda Ardern] que foi um exemplo de governo durante a pandemia.

Luciano Teixeira: Não dá para falar de Bahia sem abordar o papel das advogadas e advogados negros. A Bahia tem a maior parte da população de afrodescendentes. Como a Sra analisa o preconceito em diversos espaços do mercado jurídico para a pessoa negra no Brasil e aí na Bahia?

Daniela Borges: Uma das coisas mais importantes foi a aprovação da paridade de gênero nas eleições junto com as cotas raciais. Eu como mulher branca sei que os desafios da profissional negra na advocacia são muito maiores do que os meus. Apesar da Bahia ser um estado com população negra expressiva - Salvador é uma cidade negra - o preconceito existe muito aqui também.

A gente tem nessa gestão uma cota de 30%, mas mais da metade se declara negro ou pardo, justamente pelo nosso compromisso em trazer representatividade. É preciso políticas institucionais da OAB, mas também da sociedade de advogados para que possamos cada vez mais fazer a nossa parte dentro desse processo de mudança e de transformação.

Vivemos num país marcado por preconceitos, por desigualdades e por racismo. Precisamos, enquanto instituição e nos espaços em que nós estamos, tentar contribuir para mudar essa realidade. 

Luciano Teixeira: Ainda existe preconceito de juízes, delegados e autoridades do Judiciário em relação à mulher? Às vezes num debate, num julgamento, numa defesa, a Sra sente isso ainda - mesmo sendo presidente da OAB?

Daniela Borges: Temos o protocolo do CNJ justamente que inicia essa discussão sobre o julgamento com perspectiva de gênero, que não significa julgar a favor da mulher, mas significa julgar compreendendo que existe o machismo na nossa sociedade. A partir dessa premissa, é preciso tentar fazer com que esse machismo não interfira no julgamento. Se o processo vai ser favorável contra a mulher é uma outra história.

E eu evidentemente tenho também, na minha história, pessoas que olham com um olhar sem acreditar, sempre subestimando o nosso trabalho, a nossa capacidade. Isso é algo constante na vida. Não tem como você ser mulher e não conhecer essa realidade.

Luciano Teixeira: A OAB está tentando recuperar o tempo perdido ou ainda está parada? Ainda é o lugar do machismo? 

Daniela Borges: Aqui na Bahia viemos construindo, há alguns, a realidade que temos hoje. Chego à presidência como resultado de uma caminhada, não só minha, mas de muitas mulheres. Mas sem dúvida ainda temos muito o que fazer, porque a cultura na nossa sociedade é machista e a cultura na área jurídica não é diferente. No âmbito nacional, temos níveis diferentes de realidades.


Assuntos relacionados: Paula Surerus: "O desafio da profissão é ter um propósito"


Luciano Teixeira: Como está a luta das mulheres na indústria jurídica no Nordeste?

Daniela Borges: Todas as seccionais hoje têm paridade, mas presidentes nós só somos cinco. Duas no Sul, uma no Sudeste, uma no Centro Oeste e eu aqui no Nordeste. Então nós temos muitos desafios ainda. Muitos! Precisamos consolidar as mulheres nesses espaços: elas têm mais obstáculos, inclusive, para se manter neles.

Temos mais questionamentos a respeito de nosso trabalho. Se estuda muito hoje na área da política e do direito eleitoral a violência política. Quando vai se analisar as eleições da OAB, se verifica o tipo de crítica que é feita às mulheres, a forma como a questão é trabalhada, sempre dentro de uma perspectiva de gênero, de depreciação.

Por isso que para uma mulher chegar num lugar [de poder] é muito mais difícil. Ela enfrenta muito mais obstáculos. Mas sou otimista no sentido de que ainda falta muito, mas vejo um solo fértil para que possamos ter uma realidade realmente melhor.

Luciano Teixeira: O que a Daniela Borges, advogada, professora, presidente da OAB Bahia acrescenta para o mundo jurídico? O que a Sra contribui como pessoa e como profissional?

Daniela Borges: Sou advogada por vocação. Amo advogar. Sou tributarista, professora de direito tributário na Universidade Federal da Bahia. Advogando na área tributária e também lecionando eu contribuo para o fortalecimento da advocacia na área tributária do conhecimento, nessa área que para mim é tão importante.

Com esse trabalho que faço na OAB, procuro de fato e contribuo para que tenhamos um fortalecimento e valorização da advocacia como um todo. No final das contas é o desafio de todos nós contribuir para algo que está além de nós mesmos, para o coletivo e algo que ultrapassa apenas a minha individualidade e numa instituição que faz um trabalho muito importante, não apenas pelo Estado e pelo Estado Democrático de Direito, pela Justiça, mas também pela sociedade.

Essa é a forma que tento dar significado à minha existência, podendo fazer com muita paixão e muita dedicação o meu dia a dia de trabalho na advocacia, na docência e também poder doar um pouco de mim para algo maior que é esse trabalho que a nossa instituição faz ao longo desses 90 anos aqui na Bahia.

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.