Gabriela Manssur: "Chega de pagar com a própria vida pra ser mulher"

“Lugar de mulher é onde ela quiser, mas para que essa frase cumpra seu papel social é preciso fornecer ferramentas justas”/Justiça de Saia
“Lugar de mulher é onde ela quiser, mas para que essa frase cumpra seu papel social é preciso fornecer ferramentas justas”/Justiça de Saia
Conheça a promotora de Justiça que atua há mais de 20 anos na defesa dos direitos das mulheres.
Fecha de publicación: 09/03/2022

Na semana do Dia Internacional da Mulher, LexLatin fez uma entrevista com uma das vozes mais atuantes na defesa dos direitos das mulheres no Brasil: Gabriela Manssur. Ela é promotora de Justiça do Estado de São Paulo desde 2003 e especialista na defesa e promoção dos direitos das mulheres. 

A advogada é idealizadora de diversos projetos voltados ao empoderamento feminino, prevenção e combate à violência contra a mulher, como o Instituto Justiça de Saia, Justiceiras, Movimento pela Mulher, Tempo de Despertar e Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público. Também é integrante do Comitê Nacional Impulsionador Eles por Elas (He for she) da ONU Mulheres e do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público do Estado de São Paulo (Gevid). 

Na conversa, ela conta um pouco sobre a sua experiência nessa área, sobre seus projetos e avalia as legislações brasileiras em relação à proteção dos direitos das mulheres. Confira a entrevista na íntegra:

Luiza Santibañez: A Sra. é uma das idealizadoras do projeto Justiceiras, que visa combater e prevenir a violência de gênero. Como surgiu a ideia e quais os diferenciais do projeto?

Gabriela Manssur
Gabriela Manssur

Gabriela Manssur: Em março de 2020, devido à pandemia de coronavírus, toda a sociedade se viu obrigada a viver em isolamento social e com isso os órgãos públicos como tribunais de justiça, Defensoria Pública, delegacias de defesa da mulher e Ministério Público tiveram o atendimento ao público interrompido. As mulheres vítimas de violência passaram a conviver ininterruptamente com seus agressores e uma situação que já era delicada se agravou ainda mais. 

Países como a China e a Itália, que iniciaram o isolamento social alguns meses antes do Brasil, já traziam notícias do aumento dos casos de violência contra a mulher e feminicídio, o que nos acendeu um alerta. 

Foi pensando em como atuar neste cenário e ajudar as mulheres em situação de violência que tive a ideia de criar o Justiceiras, que surgiu como uma força tarefa multidisciplinar e online para atender, orientar e acolher mulheres que estivessem enfrentando situações de violência durante aquele momento inicial do isolamento, quando não sabíamos ainda quanto tempo duraria e qual seria a dimensão da pandemia. 

No entanto, o que surgiu como uma força tarefa momentânea, se transformou em um projeto sólido, uma política pública eficiente e advinda do terceiro setor, fruto da união de esforços entre os Institutos Justiça de Saia, do qual sou idealizadora, Instituto Nelson Wilians na pessoa da advogada Anne Wilians e do Instituto Bem Querer Mulher, dirigido pelo empresário João Santos e que já atendeu a mais de 8.500 mulheres em situação de violência e conta com mais de 9 mil voluntárias no Brasil e em 27 países do mundo. 

O projeto atua em conformidade com a transversalidade da Lei Maria da Penha e oferece orientação e apoio jurídico, psicológico, sócio assistencial, médico (em casos de abuso sexual, meninas menores de idade ou mulheres idosas) além de fornecer à mulher vítima a rede de apoio e acolhimento, que faz o papel de melhor amiga da mulher para incentivá-la a não desistir da denúncia e fortalecê-la. 


Leia também: O Judiciário e as mulheres em situação de violência


A Sra. vê uma solução, de fato, para o fim da violência de gênero?

Eu tenho cinco eixos que eu posso garantir que nós enfrentaremos a violência contra as mulher e diminuiremos esse vergonhoso índice. O primeiro eixo é: capacitação. Dos juízes, dos promotores, dos delegados, dos policiais militares, capacitação da rede, capacitação do próprio RH das empresas para acolher e receber essas mulheres, abrindo inclusive um canal de denúncias. 

O segundo eixo é a educação. Nós precisamos falar de violência contra a mulher nas escolas, nas faculdades, nas empresas e dentro de casa. Isso faz com que nós criemos homens e mulheres livres de qualquer tipo de violência, orientemos mulheres sobre seus direitos fazendo com que elas procurem seus direitos, peçam ajuda, denunciem a violência contra a mulher. 

O terceiro eixo é a fiscalização das medidas protetivas. Não pode ser um papel nas mãos do agressor, tem que ser um escudo de proteção. Botão do pânico, tornozeleira eletrônica, aplicativos, que façam com que essa mulher possa pedir ajuda caso haja um descumprimento da medida protetiva. 

O raio X da violência contra a mulher verificou que em praticamente 90% dos casos as mulheres nunca haviam pedido ajuda para ninguém. Se elas tivessem pedido ajuda, elas poderiam ter sido salvas. Sempre que uma mulher morre alguém falhou. E não é só o Poder Público que falha, é toda a sociedade brasileira. 

O quarto eixo é a ressocialização do agressor. Nós precisamos falar com os homens, nos projetos de ressocialização do homem autor de violência doméstica. Eu sou uma das protagonistas do Projeto Tempo de Despertar, onde diminuímos a reincidência da violência de 65% para 2%. O homem não acorda e resolve matar essa mulher, isso vem numa escalada da violência. E se a gente não protege a mulher e conversa com os homens antes de isso se alastrar, essa mulher será vítima de um feminicídio porque é, infelizmente, a lógica perversa da violência contra a mulher que atinge todas as classes sociais. 

E o quinto eixo é o engajamento da sociedade civil, o terceiro setor, que hoje é quem faz a política pública para mulher, e da iniciativa privada. Como as empresas podem e devem participar?

Para mim existem 5 pontos que as empresas devem atender: 

  1. Ter um código de ética, um compliance, feminino. 
  2. Atacar de 3 formas a violência contra a mulher: o assédio sexual internamente, abrir as portas para empregabilidade feminina das mulheres que sofrem violência, principalmente, e acolher as mulheres internamente.
  3. Buscar de todos os presidenciáveis um compromisso com a pauta feminina, com os direitos das mulheres, em três eixos: mais mulheres em cargos de liderança no Poder Judiciário, no Ministério Público, no Legislativo, no Executivo e também nos conselhos administrativos de empresas e escritórios de advocacia. Também ter uma dotação orçamentária própria para violência contra a mulher, é muito importante este comprometimento. E sancionar as leis mais rigorosas para o tratamento da violência contra a mulher. 
  4. Garantir o acesso à saúde, à justiça, à educação e ao emprego 
  5. Assinar a OIT 190, uma convenção que o Brasil ainda não assinou, que aborda as perspectivas da mulher no mercado de trabalho, além de também adaptar a empresa ao compliance feminino.

As empresas têm que ter a responsabilidade social, o livro ético, olhar para as mulheres não só como colaboradoras e funcionárias, mas como mulheres cidadãs de direitos. Olhar para a sociedade com as mulheres não só como consumidoras de bens e produtos, mas também como cidadãs de direitos, que pagam impostos e precisam de proteção e do direito à saúde, à educação, à propriedade, à segurança e à vida. Chega de pagar com a própria vida pra ser mulher. Precisamos de mais atitude!

Como a Sra. avalia a Lei Maria da Penha? Ela é considerada uma das leis mais avançadas em relação à violência doméstica, mas quais são os entraves que ela encontra?

Gabriela Manssur
Gabriela Manssur

A Lei Maria da Penha é fundamental para as garantias à integridade física, moral, sexual, patrimonial, psicológica e dos direitos políticos de toda mulher brasileira, além de ser considerada a 3ª melhor legislação de proteção dos direitos da mulher no mundo.

Contudo, ainda é necessário o enrijecimento das penas para os crimes de violência contra a mulher, que antes eram classificados como sendo de menor potencial ofensivo, além da aplicação de multas para os homens que incidam nos crimes. Ao sentir no bolso o peso da violência, os homens pensarão duas vezes antes de cometer tais crimes. 

A legislação brasileira precisa se desenvolver mais em relação à defesa do direito das mulheres? Teve algum avanço importante que a Sra. pode citar nos últimos anos?

Nos últimos anos a lei evoluiu muito, incentivando a tipificação de crimes específicos que antes não eram pautados nem no Código Penal, nem na Lei Maria da Penha, como a criação da Lei de Stalking, pornografia de vingança, assédio sexual nos transportes públicos, violência psicológica, violência política de gênero e a obrigatoriedade do comparecimento aos grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica, dando destaque especial para está última.

Se o enfrentamento da violência de gênero não insere os homens em políticas públicas que visam a desconstrução do padrão machista e tóxico de comportamento, não veremos solução para este cenário, uma vez que, se somente a mulher é incentivada e fortalecida para denunciar e romper com a relação, as próximas possíveis parceiras do homem denunciado estarão suscetíveis a enfrentar as mesmas situações de violência.

Se não olharmos para os homens como parte a ser trabalhada dentro do processo do relacionamento abusivo, estaremos apenas tapando o sol com a peneira. 

Como a Sra. avalia a defesa do direito das mulheres em outras regiões da América Latina?

Ao levar em consideração que Brasil e Chile têm suas legislações consideradas as melhores do mundo pela ONU, em terceiro e segundo lugar respectivamente, vemos que há um engajamento real e de comprometimento com a causa advindos da América Latina. Sem contar que a postura e medidas adotadas para combater a violência contra a mulher acaba servindo de espelho para os países vizinhos, elencando a América Latina como precursora no enfrentamento de toda e qualquer forma de violência de gênero que exista na sociedade.  

Durante a sua trajetória no Direito, a Sra. sentiu a falta de representação de mulheres em grandes cargos?

Sim, inclusive sempre busquei abordar o tema. Em 2018 idealizei o Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público como forma de debater institucionalmente a desigualdade de gênero nos cargos de destaque do Ministério Público brasileiro, e em 2021 lancei com apoio da Conamp, da qual faço parte e estou como Diretora da Conamp Mulher, a pesquisa Perfil, que visou analisar o cenário de violência de gênero para as Promotoras e Procuradoras de Justiça bem como as servidoras públicas. Mais de 1000 mulheres responderam à pesquisa. 

Infelizmente os índices de violência contra a mulher também são retrato direto da falta de representatividade feminina em espaços de poder e em cargos de destaque. Os homens devem ser grandes parceiros no enfrentamento da violência contra a mulher, mas isso não exclui a necessidade da representatividade feminina para que tenhamos parlamentares mulheres legislando em prol dos direitos de todas nós.

Deve haver comprometimento do Poder Público, iniciativa privada, instituições de ensino, terceiro setor e toda sociedade brasileira pela equidade de gênero nesses e nos demais espaços, pois essa busca traduz a responsabilidade de cada um e cada uma em se ter uma sociedade mais justa e igualitária e que vise o fim da violência contra a mulher, começando pela garantia de acesso de todas nós aos mais diversos espaços, cargos e lugares.

Lugar de mulher é onde ela quiser, mas para que essa frase cumpra seu papel social é preciso fornecer ferramentas justas que permitam a cada mulher da sociedade brasileira ser e estar onde sentir que deve. 


Veja também: Advogadas, mulheres e negras: a difícil missão de superar barreiras no mercado jurídico


Como a Sra. vê uma ascensão das mulheres no mundo jurídico?

Nos últimos anos, o Brasil acompanhou diversas situações envolvendo o Superior Tribunal de Justiça (STJ), Supremo Tribunal Federal (STF), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e em algumas delas pudemos acompanhar a atuação brilhante de mulheres ministras, magistradas, promotoras e procuradoras de Justiça, juízas de direito e desembargadoras.

Ainda que em um número reduzido em relação a quantidade de homens presentes nesses espaços, nos enche de orgulho ver a desenvoltura de cada uma delas. As respectivas atuações são a abertura de portas para que mais mulheres se sintam confiantes na busca por ocupar esses espaços também. O saldo ainda está longe de ser o ideal, mas se avaliarmos o contexto todo é extremamente positivo.   

Por fim, eu imagino que a Sra. seja uma inspiração para muitas mulheres na área do Direito, na defesa dos direitos das mulheres. Quem te inspirou na sua trajetória?

Meus pais. Quando era menina sempre me orgulhei de ver a trajetória da minha mãe, que deixou de ser dona de casa, foi cursar a faculdade de direito e até hoje é uma das advogadas mais brilhantes que conheci.

Já meu pai foi desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e eu sempre tive olhos de admiração por aquele homem importante, que ia para casa com muitos processos, trabalhava até tarde. Eu pensava “quando crescer, quero me casar com um homem como ele”.

Foi ao crescer e advogar, como minha mãe, que eu percebi que na verdade o que eu queria era SER como aquele homem. Fui advogada e aprendi muito com minha mãe, até me tornar Promotora de Justiça e exercer meu papel por meio do Ministério Público para proteger todas as mulheres. Meu trabalho ficará como herança e patrimônio para toda sociedade brasileira.

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.