Neurodiversidade: a nova fronteira do mercado jurídico

​​​​​​​Conceito trabalha condições como autismo, dislexia e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) como algo que torna a mão de obra mais plural e heterogênea/Pixabay
​​​​​​​Conceito trabalha condições como autismo, dislexia e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) como algo que torna a mão de obra mais plural e heterogênea/Pixabay
Condição ainda é pouco discutida na indústria legal, mas está cada vez mais inserida na agenda de ESG e de sustentabilidade.
Fecha de publicación: 25/04/2022

A discussão da diversidade está no topo da lista de prioridades de uma série de companhias, incluindo firmas e escritórios de advocacia. A questão de gênero, racial e identidade sexual vem sendo acolhida como nunca no mundo jurídico, apesar dos avanços ainda serem pequenos para a dimensão da discussão. Dentro desse universo de diferenças humanas a serem respeitadas pelo mercado, pouco se fala de um assunto que até bem pouco tempo era tabu, a diversidade neurológica.

Para quem não sabe, o conceito que está no pilar social de diversidade e inclusão e na agenda ESG surgiu nos anos 1990 nas discussões de Judy Singer, socióloga australiana, e procura trazer um novo entendimento sobre as diferenças de neurocognição. De acordo com Singer, essas diferenças não devem ser vistas como distúrbios, defasagem ou deficiência, mas como algo que faz parte da diversidade humana. Assim, autismo, dislexia e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) precisam ser respeitados porque estão presentes na sociedade. E é algo que torna a mão de obra mais plural e heterogênea.


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Partindo desse pressuposto, de que essas diferenças são uma espécie de conexão neurológica atípica ou neurodivergente, elas deixam de ser uma “doença” a ser tratada ou curada. São simplesmente pessoas que funcionam de outra maneira. Vendo por esse prisma, muda a forma e a maneira de trabalhar variações de atenção, socialização e aprendizagem. E é a partir daí que entra a lógica que pode ser usada pelo mercado: quando são entendidas as necessidades dessas pessoas, o que antes era encarado como limitação pode se transformar numa vantagen competitiva, algo que pode ser potencializado, melhorando a performance, buscando engajamento dos colaboradores e inovação.

Uma pesquisa da Universidade de Harvard mostra que funcionários neurodiversos mostram mais criatividade, conseguem enxergar outros ângulos (o chamado pensamento lateral), memória acima da média, capacidade de raciocínio lógico, manter a atenção prolongada no desempenho de determinada tarefa e detectar erros e padrões repetitivos. Os autistas e disléxicos se destacam em testes de reconhecimento de padrões, têm memória melhor que a maioria e se destacam em habilidades matemáticas, o que faz com que eles chamem a atenção em áreas como tecnologia da informação, segurança cibernética e desenvolvimento de softwares, por exemplo. São diferenciais competitivos importantes para o mercado de trabalho.

Por conta disso, empresas como a SAP, Hewlett Packard Enterprise (HPE), Microsoft, Willis Towers Watson, Ford e EY estão mudando seus processos de seleção e desenvolvimento de carreira para conseguir trazer talentos neurodiversos para seus quadros de funcionários. A base passa por parâmetros como sensibilidade e necessidades individuais, o que obriga gestores a conhecer melhor seus funcionários para poder trabalhar com eles.

No Brasil, o Relatório Nacional de Indicadores de Autismo, de 2015, mostra que 37% dos jovens adultos com autismo, entre 18 e 25 anos, nunca conseguiram emprego depois que saem do ensino médio, tamanho o despreparo das empresas em lidar com a neurodiversidade.

“Temos uma visão histórica do tratamento de saúde mental no Brasil que é uma saída de um tratamento médico manicomial, que institucionalizava pessoas com neurodiversidade ou com questões de desenvolvimento. Estamos passando por um processo histórico do crescimento e do aparecimento de pessoas neurodiversas, uma quebra de paradigma, que implique em conviver com a neurodiversidade e reconhecer as questões de ocupação do mercado de trabalho dessas pessoas, reconhecer as capacidades e as habilidades”, afirma Helena Meletti, psicóloga especialista em análise do comportamento.

O problema, segundo os especialistas, é que não há um manual de instrução e o mercado ainda não aprendeu a lidar com esse tipo de diversidade. Em muitas firmas, por exemplo, as vagas para pessoas com deficiência são preenchidas por quem tem algum tipo de questão motora, como cadeirantes.

“Não dá mais para tratar as pessoas neurodiversas como seres sobrenaturais que tiveram uma superação. É preciso entender que elas têm dificuldades, mas que também têm habilidades que podem ser muito aproveitadas em um escritório, por exemplo. Estamos falando de pessoas que muitas vezes podem ter uma memória excelente e fazer o controle do banco de dados de uma firma. E ajudar com questões de identificação de leis”, diz Meletti.

O fato é que alguns tipos de neurodiversidade podem ser vistos, num primeiro momento, como problemas de socialização. Muito do que chega até nós sobre esse tipo de deficiência nem sempre condiz com a realidade, como a falta de empatia, incapacidade de olhar nos olhos ou comportamento infantil.

A síndrome de Asperger, por exemplo, chamada de autismo leve, pode ser diagnosticada em várias pessoas que conhecemos no dia a dia e até em talentos do Vale do Silício, nos EUA, como Elon Musk, presidente da Tesla e da Space X, e Bill Gates, fundador da Microsoft, que estão entre os mais ricos do mundo. Outros exemplos de celebridades são o ator Anthony Hopkins e a cantora Susan Boyle.

“Tenho certeza que encontraremos pessoas autistas nas faculdades de Direito e serão possivelmente advogados no futuro. Então é importante identificar quais são as fortalezas dessas pessoas e o trabalho ideal para elas. Reconhecer que não é porque uma pessoa tem uma deficiência que ela não vai ser boa em determinada tarefa”, avalia Meletti.

Um programa no Brasil, desenvolvido pela Fundação Specialisterne, organização social nascida na Dinamarca em 2004 e com presença em 23 países, se dedica à inclusão de pessoas com autismo e outros diagnósticos na neurodiversidade. O objetivo é estimular a participação do setor empresarial e público para encontrar potenciais funcionários para as empresas, levando em conta os requisitos específicos dos cargos disponíveis. A partir daí, os candidatos são preparados para que possam integrar a equipe e vice-versa na incorporação desses profissionais por parte das companhias. Também são realizadas sessões de conscientização e treinamento para os líderes de equipes, gestores e futuros colegas para explicar o que é autismo e neurodiversidade e como incluir melhor as pessoas com essas condições em uma organização.

Tudo isso favorece a criação de um ambiente de trabalho mais inclusivo – não apenas para pessoas com autismo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que existam 70 milhões de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) em todo o mundo -  2 milhões delas no Brasil.


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Desde que começou a atuar no país, a Specialisterne Brasil formou 97 pessoas: 75 conseguiram oportunidades de emprego – uma taxa de 77,3% de inclusão profissional – em projetos realizados em São Paulo, São Leopoldo (RS) e Rio de Janeiro. A taxa de retenção dos profissionais com autismo é de 93%. O programa tem a participação de empresas como Banco Carrefour, Banco Votorantim, Braskem, CCEE, Diversey, Dow Química, Fleury,Iguatemi, Itaú Unibanco, J.P. Morgan, Kantar-Ibope, SAP e Telefônica-Vivo.

Nos últimos 50 anos vimos algumas transformações importantes em relação às pessoas com deficiência. Elas eram vistas a partir de um modelo médico. Alguém dizia: esta pessoa é louca ou não é louca. E sendo assim, ela simplesmente perdia todos os seus direitos. Ela era retirada da sociedade, retirada do convívio com a família e não podia exercer direitos sobre os seus bens, não podia votar, não podia fazer praticamente nada. Em relação ao trabalho, então, se considerava que não teria porque trabalhar”, analisa avalia Eduardo Tomasevicius, doutor em Direito Civil e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Leis garantiram mudança de mentalidade

A lógica de segregação no país para pessoas neurodiversas começou a mudar e ganhou força a partir do final dos anos 1970, com as leis antimanicomiais, em plena luta pela redemocratização. Já no regime democrático, foi aprovada a Lei de Cotas, em 1991, com foco a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Nos anos 2000, foi criada a Lei Nº 10.098, que garantiu uma política de acessibilidade, com a quebra de barreiras no dia a dia: urbanas, arquitetônicas, nos transportes e na comunicação, o que foi um passo importante para permitir a autonomia das pessoas com deficiência.

Logo depois veio a Lei 10.216/2001, nomeada “Lei Paulo Delgado”, que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo de assistência manicomial no país.

Em 2007, foi firmada a Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência, a Convenção de Nova York, para “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”.

A partir dessa mudança, países latinoamericanos alteraram suas legislações para reconhecer todos os direitos da pessoa com deficiência. A convenção foi incorporada ao direito brasileiro em 2009, com status de emenda constitucional.  

Em 2015 foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, ou o chamado Estatuto da Pessoa com Deficiência. O objetivo é permitir condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, principalmente a questão da inclusão social.

“Isso provocou um terremoto dentro do direito, porque acabou com a interdição”, explica Tomasevicius. A medida judicial era usada pelas famílias e autoridades para privar o que eles chamavam de pessoas sem discernimento, de gerir seus próprios bens e de praticar atos da vida civil, nomeando um curador. “Os juristas até hoje nos congressos e nas aulas vivem patinando em relação a isso, não sabem como lidar, não reconhecem que houve uma mudança do modelo médico para o modelo bio psico social”, diz o advogado.

A discussão dessas leis e a sua aplicabilidade ao mercado de trabalho ainda é tema de debate jurídico, algo que precisa ser melhor analisado pelos legisladores brasileiros.  Juristas acreditam que ainda falta uma rede de apoio, incentivos e discussões por parte dos governos e de entidades trabalhistas, por exemplo.

“O caminho ainda é longo, cada sociedade está em um ritmo. O foco aqui no Brasil está na questão da educação, incorporada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Com mais crianças estudando e incluídas, isso vai pressionar o mercado”, afirma o especialista.


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Na área do Direito, a questão é quantas pessoas neurodiversas conseguem concluir o ensino médio e chegar à faculdade. “Ainda tem poucas, não tenho observado ainda a chegada de um número significativo de alunos neurodiferentes. Lidamos mais com pessoas com deficiência física, cadeirantes, gente com dificuldades de locomoção e pessoas cegas. Não há uma política nesse sentido. Acho que seria interessante o Estado ajudar, estabelecendo uma metodologia de trabalho para que não haja segregação”, diz Tomasevicius.

Como essas pessoas vão trabalhar sem que haja modificações substanciais na estrutura da empresa? Esse é o grande desafio para companhias e escritórios de advocacia. Já há um caminho importante sendo traçado, mas esse é um processo lento, porque essas pessoas foram estigmatizadas por muito tempo.

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