Horacio Gutierrez: O papel de um advogado em uma empresa como o Spotify

“Os contratos de artistas e compositores são regidos por termos que existiam e foram justificados talvez em meados do século XX”
“Os contratos de artistas e compositores são regidos por termos que existiam e foram justificados talvez em meados do século XX”
“As plataformas tecnológicas evoluíram e os modelos de negócios da indústria musical não evoluíram no mesmo ritmo"
Fecha de publicación: 09/12/2021

Dezembro é um mês de festa, tradição... e do Spotify Wrapped, o famoso resumo em que a plataforma personaliza as músicas e artistas mais ouvidos do ano. Mas o que está por trás desse clique? O que fez do Spotify ser o Spotify? A empresa tem ações negociadas no mercado internacional acima de US$ 240 hoje (R$ 1351 no cambio de 13 de dezembro).

Horacio Gutierrez
Horacio Gutierrez

Horacio Gutierrez, head of global affairs e chief legal officer do Spotify, diz que a plataforma conseguiu fazer com que os usuários ouvissem "quase instantaneamente" a música em uma nuvem. Mas há outra coisa. Com o Spotify, qualquer usuário poderia reproduzir  infinitas playlists gratuitamente.

Estamos falando de uma plataforma que conseguiu obter licenças legais de catálogos universais de música. E outra coisa: precisamente Horacio Gutierrez, o advogado venezuelano que lidera o escritório jurídico da empresa, projetou a estratégia que destrava o necessário debate sobre práticas monopolistas nesse setor. Um exercício na democratização do conteúdo.

Enquanto o mundo caminha para a economia colaborativa através de plataformas digitais, os mercados se readaptam e as empresas modelam estruturas ainda livres de leis de monopólio. Este é o cenário perfeito para que se destaque alguém especializado em normas de propriedade intelectual, antitruste e estruturas de negócios.

Assim é Horacio Gutierrez, ex-diretor jurídico global da Microsoft, um advogado altamente especializado com gostos ecléticos para música e podcasts.

Vamos fazer uma turnê cronológica das mudanças no setor musical. Com o iTunes deixamos de comprar discos para uma única música. Com o Spotify podemos ouvir muitas músicas, o que leva a uma democratização da música para os usuários. Como isso foi possível?

O fio comum é a complexidade do mundo em que atuamos hoje, onde a disrupção tecnológica está ligada a mudanças nas estruturas de negócios. Estamos falando do impacto que a transição para o mundo digital teve, o impacto da Internet. A grande inovação do Spotify foi que quando o iTunes tinha o modelo de baixar uma música e pagar 99 centavos por cada uma, fizemos basicamente três coisas:

  • Passamos de um modelo de download individual de música para um modelo onde o catálogo interno universal de música estava disponível para o usuário. Isso já existia, mas em empresas que não tinham resolvido o problema do licenciamento, de modo que o conteúdo não era legal.  Houve grandes batalhas nos tribunais, nos EUA, como o caso do Napster. O Spotify conseguiu fornecer esse acesso licenciado com todos os direitos de propriedade intelectual, de modo que artistas e empresas que os representassem pudessem se beneficiar da monetização da plataforma.
  • Quando o Spotify foi fundado, há 13 anos, não havia tecnologia para você ouvir uma música imediatamente. Havia um atraso de sete, oito segundos quando você tentava ouvir música da nuvem e era uma barreira psicológica que impediu as pessoas de aceitar o modelo de streaming. O Spotify conseguiu reduzir esse atraso para 250 milissegundos, que é escutar de maneira quase instantânea. Foi um desafio tecnológico. 
  • A terceira é a criação deste modelo freemium. Ou seja, não só existe um modelo para assinantes que pagam um valor mensal de assinatura, mas as pessoas podem ouvir o mesmo catálogo, não uma pequena parte, mas o mesmo catálogo, e de graça, desde que estejam dispostos a ouvir anúncios de publicidade.  

Esse novo modelo levou a uma disruptura no setor. Quais foram as reações?

Essas mudanças fizeram com que o modelo do iTunes de baixar e pagar por música deixasse de ser relevante.

Então a Apple começou a cobrar de aplicativos 30% de toda a receita que tínhamos com usuários de iPhone e iPad. Não só a primeira vez que baixaram o aplicativo, mas sempre.

Concordamos com isso e tivemos que aumentar nosso preço para pagar o custo. Naquela época, o Spotify não tinha lucro. Na verdade, o Spotify ainda tem tido dificuldade em ter lucro líquido no modelo de negócio da música: 70% de cada dólar que recebemos é pago aos artistas através de suas gravadoras.

Então, o Spotify elevou o preço de sua assinatura. O que aconteceu depois?

A Apple comprou a Beats Music, trocou de nome e lançou a um preço mais baixo que o nosso. Lançou a $9,99, que era o preço que tínhamos antes de sermos forçados a elevá-lo. A Apple havia criado um custo arbitrário para seus concorrentes, quando eles podiam lançar seu próprio produto que não estava sujeito a esses custos. E isso é claramente anti-competitivo.

Por essa razão, há três anos, ajuizamos uma ação na Comissão Europeia e, embora naquela época fôssemos uma voz solitária que falava sobre o assunto, hoje há muitas empresas que o fazem. A questão está sendo veiculada não só nos tribunais, mas também nas Câmaras Legislativas da Europa e dos Estados Unidos.

É um exemplo do caráter dinâmico da concorrência e de que a concorrência está ocorrendo não apenas no nível de produtos e no nível de preço, mas também no nível regulatório e no nível legal, onde as empresas estão tentando modernizar o marco regulatório para garantir que a concorrência desleal não ocorra.

Ainda há espaços importantes que devem ser preenchidos?

Houve discussões interessantes e parece haver um consenso de que a legislação precisa ser modernizada, mas ainda não alcançamos nada concreto. As decisões do Tribunal não foram definitivas. Nosso caso ainda não foi decidido. Os projetos de Lei ainda não foram promulgados pelo Parlamento Europeu nem pelo Congresso dos Estados Unidos. Ainda temos um ano ou dois para ver o efeito específico. A principal pergunta que nós, como advogados, nos perguntamos é: quais são as regras de concorrência que devem se aplicar a este mundo digital?

A velocidade com que essas tendências tecnológicas se movem é muito rápida. O que estamos vendo é um processo de tentar entender as realidades que enfrentamos e adaptar o marco legal que os rege, de uma forma que a resposta jurídica e a regulação não estejam defasadas.


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Que regras precisamos adotar urgentemente?

A proteção de dados é fundamental, porque a proteção da privacidade dos cidadãos é um direito humano reconhecido pela Declaração de Direitos Universais das Nações Unidas. Foram feitos progressos consideráveis nesta questão, especialmente na Europa. Nos EUA, é importante promulgar uma nova lei que realmente proteja os indivíduos. Hoje, os EUA estão um pouco atrasados na proteção desses direitos.

Também é importante que o sistema de regulamentações antitruste seja modernizado, particularmente nos Estados Unidos, mas também na Europa, porque eles não dão aos reguladores as ferramentas para agir de forma rápida e eficaz, a tempo de corrigir os desequilíbrios da conduta monopolista de algumas empresas.

Outra questão que é menos regulatória, mas mais do mercado, tem a ver com os artistas. As plataformas tecnológicas evoluíram e os modelos de negócios da indústria musical não evoluíram no mesmo ritmo. Assim, enquanto o Spotify hoje paga mais de 70 centavos por cada dólar que recebe para gravadoras e empresas que lidam com direitos autorais de compositores, a porcentagem que acaba chegando para os artistas é muito menor. E a razão é que os contratos de artistas e compositores com essas organizações são regidos por termos que existiam e foram justificados talvez em meados do século XX, mas que não se justificam hoje, quando os custos de distribuição da música foram eliminados graças à distribuição digital.

A atualização desses termos, de modo que uma maior porcentagem dos lucros provenientes do streaming cheguem ao artista, é urgente.

Por que você decidiu deixar a Microsoft e se juntar ao Spotify?

Vim para o Spotify depois de quase 18 anos trabalhando na Microsoft, na América Latina, e depois na sede, em Seattle. Passei alguns anos no comando do departamento jurídico e corporativo na Europa, Oriente Médio e África. Eventualmente, tendo entrado como advogado corporativo, acabei como diretor jurídico global da Microsoft. Minha decisão de deixar a Microsoft para o Spotify não foi por acaso. Foi muito, muito pensado e analisado. 

O que me atraiu para o Spotify foi que, embora tivesse 2 mil funcionários globalmente na época, já era líder em sua categoria. Era uma empresa inovadora, onde o advogado teria um papel talvez mais importante do que ele poderia ter tido em outro lugar. Porque é uma empresa de conteúdo e a grande maioria é licenciada por terceiros, de modo que o conhecimento da propriedade intelectual e a capacidade de negociar em contratos de licenciamento é essencial.

Ao mesmo tempo, é uma empresa de tecnologia onde ficou claro que os desafios regulatórios seriam importantes e era necessário saber como gerir essas questões: não só estar na defensiva, mas até mesmo ser capaz de ter uma posição de liderança também na hora de advogar por mudanças legislativas e regulatórias.

Para mim era super atrativo estar em uma empresa em que o papel do advogado não era simplesmente o de um consultor, mas de alguém que estava participando de decisões estratégicas e - de forma maior ou menor - influenciando a direção que a empresa iria tomar no nível dos produtos, no nível de negócios. E a verdade é que não me arrependo. É uma experiência fantástica.


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Na sua opinião, quais ativos intangíveis são os mais valiosos do Spotify?

Uma das razões para o sucesso é ser muito claro sobre quais são as competências e quais são as vantagens competitivas. Somos uma empresa que é uma fração do tamanho de nossos concorrentes, como Google, Apple, Amazon, que são empresas que têm várias vezes mais engenheiros e mais capacidade de criar produtos.

O que temos a nosso favor é a clareza de nossa abordagem e nossa força: tudo o que tem a ver com áudio.

Começamos com música, depois com podcast. Na semana passada foi anunciado que adquirimos uma empresa de audiobooks. O fato de sermos tão claros sobre a abordagem competitiva significa que, embora sejamos uma pequena empresa, podemos atacar. A área de inovação está no áudio. O Spotify foi criado em uma inovação tecnológica específica: permitir o streaming, acelerar a velocidade com que um arquivo de música que não está no seu dispositivo é reproduzido. 

A partir daí tem havido toda uma cadeia de inovações e agora começamos a incorporar outros tipos de formatos de áudio. Começamos a misturar experiências de vídeo com a experiência de áudio, que tornam a experiência auditiva ainda mais rica.

Nosso portfólio de patentes não é muito grande, focamos na qualidade mais do que na quantidade. Mas é representativo o fato de termos engenheiros e pessoas inovadoras  trabalhando para nós em todas as partes do mundo, desenvolvendo o Spotify do futuro.

Quais são as competências que um advogado que trabalha em inovação e tecnologia deve ter?

As indústrias de inovação exigem competências jurídicas específicas. Por exemplo, proteger a propriedade intelectual a nível mundial.  Estamos em uma economia globalizada, com regimes legais de patentes e propriedade intelectual diferentes. 

É necessário saber lidar com tratados internacionais, mas também com a lei local em muitos desses países. O direito à privacidade, proteção de dados, regulamentos das leis antitruste estão se tornando cada vez mais importantes. Eles estão mudando todos os dias! Então você tem que se manter atualizado e conhecer essas questões em profundidade.

Os advogados, especialmente os da minha geração, foram treinados para ter uma visão um pouco estática da realidade. E acontece que no mundo da tecnologia a única constante é a mudança. As novas tecnologias tendem a ser movimentos telúricos no nível de negócios e devemos nos adaptar a essa visão dinâmica. O advogado deve ter não só a capacidade de se adaptar às mudanças, mas de ter sucesso em um ambiente de mudança constante.


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Quais são suas dicas para jovens advogados, considerando sua evolução profissional?

O tema chave para a evolução da minha carreira foi, primeiro, minha curiosidade e meu interesse em aprender novos temas. Eu fui de advogado comercial para ser um advogado de propriedade intelectual, e depois em tecnologia, e eu tive que aprender direito de concorrência.

E uma das coisas que mais gostei na minha carreira é que tive a oportunidade de me reinventar à medida que novos desafios se apresentaram. Então, ter uma mente aberta, não estar tão apegado à sua área específica de atuação, mas ter curiosidade de aprender não só questões jurídicas, mas também as de políticas públicas, estratégia de negócios, ter interesse na evolução tecnológica e na concorrência entre plataformas tecnológicas.

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