Internacionalização de terras brasileiras: riscos e oportunidades

3,98 milhões de hectares de terras agrícolas no Brasil pertencem a estrangeiros, segundo o Incra/Pixabay
3,98 milhões de hectares de terras agrícolas no Brasil pertencem a estrangeiros, segundo o Incra/Pixabay
Legislação brasileira busca evitar a concentração de terras em controle estrangeiro e garantir espaço brasileiro na agricultura.
Fecha de publicación: 01/08/2023

Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), mais de 3,98 milhões de hectares de terras agrícolas no Brasil pertencem a estrangeiros, empresas estrangeiras ou empresas brasileiras controladas por estrangeiros. Isso equivale dizer que um território do tamanho do Estado do Rio de Janeiro está nas mãos de estrangeiros. 

A venda de terras nacionais para pessoas físicas e jurídicas de outros países é regulada pela Lei nº 5.709/71 e pela Instrução Normativa nº 88/2017 do Incra. De acordo com a legislação, essas pessoas só poderão adquirir imóveis rurais para a implantação de projetos agrícolas, pecuários, industriais, ou de colonização, vinculados aos seus objetivos estatutários.

No legislativo, tramita o Projeto de Lei nº 2.963/19 que facilita a compra, a posse e o arrendamento de propriedades rurais no Brasil por estrangeiros. A proposta dispensa a necessidade de autorização para aquisição por estrangeiros quando se tratar de imóveis com áreas até 15 módulos fiscais. No entanto, institui que a soma das áreas rurais pertencentes e arrendadas a pessoas de outros países não poderá ultrapassar 25% da superfície dos municípios onde se localizam.


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Essa flexibilização das regras é vista de forma positiva pelo setor do agronegócio, que espera a abertura para o investimento estrangeiro. A iniciativa esbarrou nos movimentos sociais, indígenas, quilombolas e ligados à reforma agrária, que temem pelo fenômeno da estrangeirização de terras, pela ameaça à soberania nacional, pelo acesso às terras e pela preservação dos recursos ambientais.

Mauro Conte Filho
Mauro Conte Filho

De acordo com Mauro Conte Filho, sócio das áreas de contencioso cível e imobiliário do Goulart Penteado Advogados, a mobilização para a criação de um controle regulatório da aquisição de terras brasileiras por estrangeiros foi motivado, justamente, pela descoberta da exploração ilegal de recursos na Amazônia, na década de 1960, por multinacionais estadunidenses e europeias. 

“Por essa razão, foi sancionada a Lei nº 5.709/71, inicialmente motivada por movimentos sociais do campo, além de especialistas na temática agrária, que defendiam que a limitação imposta pela lei “obrigaria” os estrangeiros a criar alianças com as empresas brasileiras para operar no país”, diz.

Atualmente, há duas ações no Supremo Tribunal Federal que abordam a validade das limitações para aquisição de terras rurais por estrangeiros. Em maio, a Corte cassou a liminar que havia sido concedida pelo Ministro André Mendonça, suspendendo, em todo o território nacional, os processos judiciais que tratavam da matéria. Por enquanto, não há previsão de data para o julgamento.

A partir das suas experiências e conhecimentos, os especialistas em direito imobiliário do Goulart Penteado, Mauro Conte Filho e Raphaell Marden, nos explicam as possibilidades de compra de terras por estrangeiros no Brasil e os desdobramentos das atuais discussões em torno do tema.

LexLatin: Quais são os requisitos e facilidades para estrangeiros comprarem terras no Brasil e quais as limitações impostas pela legislação vigente?

Inicialmente, não há, no Brasil, lei que proíba a compra de propriedades nacionais por estrangeiros.

Desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988, ao tratar sobre a política agrícola, fundiária e da reforma agrária, preocupou-se o Constituinte em estabelecer critérios para a aquisição ou arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira, que seriam objeto de lei própria, com o intuito de evitar a concentração de terras em controle estrangeiro e garantir o espaço do brasileiro no manejo agrícola. 

Com a regulamentação do tema, foram incluídos, também, os requisitos para a aquisição de terras por pessoas jurídicas brasileiras controladas, direta ou indiretamente, por pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas, que detenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no exterior.

De maneira geral, de acordo com a legislação vigente, a aquisição de imóveis por essas pessoas apenas poderá ser feita se estiver destinada à implantação de projetos agrícolas, pecuários, industriais ou de colonização, desde que vinculados aos seus objetivos estatutários (art. 5º, Lei nº 5.709/71), com a respectiva averbação da autorização pelo Ministério da Agricultura ou da Indústria e Comércio.

Para controle de aquisição das propriedades, a lei estabelece o Módulo de Exploração Indefinida (MEI), como unidade de medida, cujo parâmetro será determinado por região ou município. A partir dessa classificação, temos os seguintes critérios:

  • Para propriedades até 3 MEIs, a aquisição por estrangeiro pessoa física será livre, independendo de qualquer autorização ou licença, ressalvadas as exigências gerais determinadas em lei (art. 3º, §1º, da Lei 5707/51);
  • Para propriedades entre 3 e 50 MEIs, a aquisição por estrangeiro pessoa física dependerá

Já o estrangeiro pessoa física poderá adquirir imóvel rural em terras brasileiras, desde que não exceda 50 módulos de exploração indefinida, em área contínua ou descontínua, de acordo com o art. 3º, Lei 5.709/71.

Por fim, cabe ponderar que a lei não é aplicável para os casos de sucessão hereditária, no caso do herdeiro ser estrangeiro.


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Qual foi o contexto que motivou a promoção desse controle regulatório? 

O controle regulatório da aquisição de terras brasileiras por estrangeiros foi motivado pela descoberta da exploração ilegal de recursos na Amazônia, na década de 1960, por multinacionais estadunidenses e europeias, fato que ensejou, inclusive, a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.

Por essa razão, foi sancionada a Lei nº 5.709/71, inicialmente motivada por movimentos sociais do campo, além de especialistas na temática agrária, que defendiam que a limitação imposta pela lei “obrigaria” os estrangeiros a criar alianças com as empresas brasileiras para operar no país.

Quais são as suas recomendações para um cliente estrangeiro ou potencial cliente que tenha um projeto de investimento imobiliário em curso?

Recomendamos que a compra de terras brasileiras por estrangeiros seja precedida de análises, pareceres e estudos geográficos, a fim de se verificar se o projeto a ser estabelecido em território nacional atende aos requisitos da Lei 5.709/1971.

Em posse dos estudos prévios e dos documentos exigidos por lei, recomenda-se a contratação de advogado especializado no tema para assessoramento junto aos órgãos administrativos e judiciais competentes, visando aos registros necessários à operação.

Caso não atendidos os requisitos legais, o investidor estrangeiro poderá se valer do Fundo de Investimento na Cadeia Produtiva Agroindustrial (Fiagro), adquirindo ativos imobiliários rurais que serão administrados pelo próprio fundo.

Que possibilidades o Fiagro abre para estrangeiros investirem em terras brasileiras?

O Fundo de Investimento na Cadeia Produtiva Agroindustrial (Fiagro), que muito se assemelha aos Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs), foi criado pela Lei nº 14.310/2021 para aprimorar o setor do agronegócio, apoiando o produtor rural através da facilidade de financiamentos.

De maneira geral, o Fiagro permite a reunião de investidores, podendo ser pessoa física e/ou jurídica, para aplicar no agronegócio brasileiro. Em outras palavras, o investidor escolhe o fundo de sua escolha que, por sua vez, adquirirá um ou mais ativos imobiliários para desfrutar dos rendimentos que serão proporcionados por aquele fundo.

Assim, esse é o meio mais célere e prático para investimento estrangeiro. Isto porque o Fiagro permite injetar capital estrangeiro no agronegócio sem, necessariamente, enfrentar os diversos requisitos estabelecidos pela Lei nº 5.709/71 e o Ato Normativo nº 88/2017 do INCRA, já que não haverá a compra direta de imóvel rural estrangeiro, mas apenas do título no mercado de investimento.


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Qual o alcance da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o fenômeno da estrangeirização fundiária e do acesso à terra por comunidades indígenas?

Há, no STF, duas ações que abordam a aquisição de terras rurais por estrangeiros. A primeira delas, ajuizada pela Sociedade Rural Brasileira (SRB), discute a recepção, pela Constituição Federal, do artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 5.709/71, que estende o regime jurídico nela estabelecido à pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no exterior.

A segunda ação, ajuizada pela União e pelo INCRA, pede a declaração de nulidade do parecer da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, que dispensou a aplicação do regime jurídico da Lei 5.709/71 aos casos em questão.

No que se refere ao acesso de terra por comunidades indígenas, encontra-se em trâmite, no STF, ação que discute o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, tese jurídica segundo a qual os povos indígenas teriam direito apenas às terras que já ocupavam ou disputavam em 05/10/1988, data de promulgação da Constituição Federal.

Atualmente, o julgamento está suspenso, com dois votos contrários e um voto favorável à tese jurídica, sem data prevista para a sua conclusão.

Em que pese a inexistência de decisões finais sobre as temáticas, é importante ressaltar que todas as ações citadas foram afetadas pelo regime de repercussão geral, de modo que as decisões produzirão, como regra geral, efeitos erga omnes (oponíveis contra todos) e retroativos.

Qual é a situação do Projeto de Lei 2.963/19, que mudanças ele traz e como a decisão do STF afeta essa iniciativa legal?

O Projeto de Lei nº 2.963/19, elaborado pelo viés da liberdade econômica e que altera a legislação brasileira sobre a venda de terras a estrangeiros, foi aprovado pelo Senado da República em 15/12/2020 e atualmente aguarda a apreciação da Câmara dos Deputados.

Apesar de ainda conter diversas restrições, o PL visa facilitar o acesso de estrangeiros a terras brasileiras, atraindo capital, principalmente para o setor do agronegócio.

Se a legislação atual, datada de 1971, limita a aquisição de terras por pessoas físicas estrangeiras a 50 mil hectares, o projeto de lei aumenta esse limite para 25% da área de cada município brasileiro, sem qualquer distinção, desde que não ultrapassado o limite de 40% para terras negociadas a estrangeiros de um mesmo país.

Ainda, de acordo com o texto do PL, as pessoas jurídicas brasileiras controladas direta ou indiretamente por estrangeiros não mais enfrentarão os impedimentos aplicáveis a estrangeiros.

A princípio, a decisão do STF não afeta o trâmite do PL na Câmara dos Deputados, pois ainda não há previsão para votação e eventual promulgação da Lei. Assim, possíveis questões surgidas antes do julgamento definitivo do STF deverão ser decididas com base nos diplomas que atualmente tratam do tema, notadamente a Lei nº 5.709/71 e a Instrução Normativa nº 88/2017, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

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