Supremo julga caso da Terra Indígena Guyraroka

Recurso é movido pela comunidade indígena Guarani Kaiowá, que não foi ouvida nem citada no processo de 2014/Thristin Braga/CIDH
Recurso é movido pela comunidade indígena Guarani Kaiowá, que não foi ouvida nem citada no processo de 2014/Thristin Braga/CIDH
Julgamento da ação, que busca reverter a anulação da terra indígena que fica em MS, sem que comunidade fosse ouvida, será retomado em plenário virtual nesta sexta-feira (26).
Fecha de publicación: 25/03/2021

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O Supremo Tribunal Federal (STF) retomará, a partir desta sexta-feira (26), o julgamento da ação que busca reverter a anulação da Terra Indígena Guyraroka, do povo Guarani Kaiowá. O recurso é movido pela própria comunidade indígena, que não foi ouvida nem citada no processo que, em 2014, culminou na anulação do processo administrativo de demarcação de sua terra pela Segunda Turma do STF.

O julgamento ocorre em plenário virtual ao longo de uma semana, sem necessidade de reunião por videochamada e espaço para sustentação oral das partes.

A ausência de participação da comunidade Guyraroka no processo é o principal argumento para reverter a decisão da Segunda Turma. O direito de acesso à Justiça é garantido expressamente aos povos indígenas no artigo 232 da Constituição Federal de 1988 e vem sendo garantido em diversas decisões recentes da própria Suprema Corte.


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Além disso, outros dois pontos destacados pela defesa da comunidade indígena são o fato de que a decisão baseou-se na tese inconstitucional do marco temporal, ainda em discussão no Supremo, e foi tomada a partir de um mandado de segurança. Esta modalidade jurídica não permite a apresentação de novas provas e o próprio STF vem decidindo que ela não deve ser utilizada para discutir demarcações de terras indígenas, devido à complexidade do tema.

Desde a anulação, em 2014, o povo Guarani e Kaiowá vem se mobilizando para reaver a demarcação do tekoha – lugar onde se é – Guyraroka. As 26 famílias da aldeia vivem hoje numa área de 55 hectares, uma pequena parcela dos 11 mil hectares identificados e delimitados pela Funai em 2004 e declarados como de ocupação tradicional indígena pelo Ministério da Justiça em 2009.

Além do pouco espaço, a comunidade vive cercada por grandes fazendas, que ocupam seu território para o plantio de monoculturas como soja, milho e cana-de-açúcar. A proximidade tem gerado ameaças às lideranças e até a intoxicação de crianças e adultos pelo veneno despejado nas lavouras, separadas da aldeia apenas pelas cercas de arame.

O povo Guarani e Kaiowá chegou a recorrer da decisão da Segunda Turma, mas seus pedidos de admissão foram negados e o processo transitou em julgado em meados de 2016. Inconformada, a comunidade da TI Guyraroka ingressou em 2018 com a Ação Rescisória (AR) 2686, que busca reverter o julgamento no qual foi ignorada.

A rescisória começou a ser julgada no ano de 2018, mas foi retirada de pauta após um pedido de vistas do ministro Edson Fachin. A ministra Carmen Lúcia e o ministro Luiz Fux, relator do caso, votaram contra o pedido da comunidade. A Procuradoria-Geral da República (PGR) manifestou-se favoravelmente aos indígenas. Em 2019, o julgamento chegou a retornar à pauta da Corte, mas foi novamente adiado.

“Estamos na expectativa desse julgamento, pedimos aos ministros que avaliem nossa situação e a precariedade onde estamos vivendo hoje”, afirma Erileide Domingues Guarani Kaiowá, moradora do tekoha Guyraroka. “Vamos nos manifestar e insistir pela vitória”.

O risco de um possível despejo, caso a anulação não seja revertida, e a situação de violência e violações vivenciadas pelos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul fizeram com que o caso fosse levado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que foi à terra indígena durante sua visita ao Brasil, em 2018. 


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A CIDH classificou a situação do povo Guarani e Kaiowá como uma “grave situação humanitária” e emitiu, em 2019, medidas cautelares em favor dos indígenas Guyraroka, solicitando ao Estado brasileiro que tome providências para garantir o direito à vida e à integridade pessoal dos membros da comunidade. 

Foto: Tiago Miotto/Cimi

Acesso à Justiça

A efetivação do direito constitucional de acesso à Justiça é uma reivindicação dos povos indígenas, muitas vezes prejudicados por decisões judiciais tomadas sem sua participação.

Recentemente, em pelo menos quatro outras ações rescisórias, o STF suspendeu decisões contrárias aos indígenas em processos nos quais eles não foram ouvidos. As ações tratavam das Terras Indígenas Toldo Boa Vista e Palmas, ambas do povo Kaingang, no Paraná.

“Todas essas ações contam com decisões favoráveis aos indígenas justamente porque não houve a citação da comunidade, o que a Suprema Corte vem entendendo que gera nulidade”, explica Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e um dos advogados da comunidade.

“O caso Guyraroka é um caso clássico do que as comunidades indígenas enfrentam por todo o país, qual seja, a dificuldade de ter acesso à Justiça. Vários processos estão tramitando e decisões sendo tomadas sem ouvir os maiores interessados, justamente as pessoas que vão arcar com o peso de eventual decisão judicial”, diz Luís Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e também advogado da comunidade na ação.

“Isso é um resquício do regime tutelar, que perdurou durante muito tempo no Brasil, e é resquício também de uma posição racista em relação aos povos indígenas, que tende a invisibilizar, mas também a obstruir o acesso à Justiça por parte dos povos e comunidades indígenas”, avalia Eloy.

Nos últimos anos, povos indígenas e suas organizações vêm sendo reconhecidos pelo STF como representantes legítimos em processos de grande relevância, como o caso Xokleng que teve repercussão geral determinada pela Corte e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, que cobra do poder público ações de combate à pandemia entre os povos indígenas. 

Marco temporal

O principal argumento utilizado para anular a demarcação da TI Guyraroka foi a tese do “marco temporal”, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

Ao longo do século XX, os Guarani Kaiowá foram expulsos várias vezes do tekoha Guyraroka, progressivamente ocupado por fazendeiros. Os indígenas, entretanto, nunca desistiram do seu território e seguiram retornando a ele, numa trajetória de idas e vindas que culminou na atual retomada, onde estão há mais de vinte anos.

“Nasci aqui no Guyraroka em 1920, e estou pedindo para vocês, ministros, devolver para mim essa aldeia Guyraroka”, afirma seu Tito Vilhalva, ancião centenário do tekoha. “Estamos pedindo pela demarcação para nós podermos sossegar e vocês também. Nasci aqui mesmo, em 1920, e estou com 101 anos. Naquela época, aqui era já aldeia. Conheço tudo aqui, por isso estamos pedindo a demarcação da nossa terra”.

A tese do marco temporal, que apareceu pela primeira vez no STF no caso Raposa Serra do Sol, ainda está em discussão no próprio Supremo e pode vir a ser definida no caso de repercussão geral envolvendo o povo Xokleng.


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“Em 2014, a Segunda Turma resgatou e aplicou a tese do marco temporal no caso Guyraroka, sem ter passado pelo crivo do contraditório, pois não ouviram os povos indígenas. Agora, o reconhecimento da repercussão geral, indicando que esse tema não está pacificado no STF, dá mais um elemento para justificar a reversão do julgado que anulou a TI Guyraroka”, avalia Modesto. 

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