Lei Maria da Penha: o que muda com policiais autorizados a determinar medida protetiva?

Nesta semana, a maioria do STF entendeu que as alterações são constitucionais e podem ser aplicadas/Agência Brasília
Nesta semana, a maioria do STF entendeu que as alterações são constitucionais e podem ser aplicadas/Agência Brasília
Discussão abre debate para o abismo que existe entre as cidades maiores, com aparelhamento da justiça, e as menores, sem profissionais especializados.
Fecha de publicación: 24/03/2022

Desde que começou a valer como norma, há 16 anos, a Lei Maria da Penha tem sido um dos casos mais emblemáticos de sucesso e de combate à violência de gênero no Brasil e na América Latina. O conjunto de regras com instrumentos de proteção e acolhimento das mulheres em situação de violência trouxe mecanismos jurídicos que garantem assistência social, psicológica e isolam a vítima do agressor, que também passa a ser acompanhado pelo sistema jurisdicional.

Nesse período, a regulamentação vem sendo modificada para dar mais segurança às vítimas de violência. Uma dessas alterações é a Lei 13.827/2019, que permite que a medida protetiva de afastamento do agressor seja concedida pelo delegado, se o município não for sede de comarca, ou pelo policial, caso também não haja delegado de polícia no momento.


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A norma motivou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF). O pedido, feito pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), indicava a ofensa ao princípio da reserva de jurisdição, uma vez que atribui à autoridade policial competência estrita ao Judiciário para ingressar no lar ou domicílio do cidadão, retirá-lo e mantê-lo afastado.

Nesta semana, a maioria do STF entendeu que as alterações são constitucionais e podem ser aplicadas, o que afeta a situação de milhares de vítimas, principalmente em cidades do interior do país.

 

Para os especialistas ouvidos por LexLatin, a partir de agora será preciso maior atenção e preparo das autoridades policiais diante de situações de violência contra a mulher. “Isso porque, se por um lado se reconhece a constitucionalidade dessa competência policial, por outro também deverá haver - e é importante que haja - uma cobrança maior da sociedade quanto ao efetivo e correto exercício dessa competência cautelar”, avalia Cecilia Mello, sócia do escritório que leva seu nome.

 

Para a advogada, o que deve ser considerado, em primeiro lugar, é a preservação da vida e integridade da vítima e seus dependentes. “Há necessidade que os efeitos práticos se verifiquem nesses contextos de violência. E as autoridades policiais devem ser preparadas para isso, a exemplo de tudo quanto vem sendo implementado, por exemplo, nas Delegacias das Mulheres”, diz.

A discussão levanta um debate maior em relação às medidas que são tomadas nos grandes centros, com aparelhamento policial e de justiça, e cidades do interior, onde os recursos são outros, muitas vezes bem menores, o que dificulta a punição dos culpados e proteção das vítimas.

“Esse é o nosso grande problema, é a rede. Porque São Paulo, por exemplo, tem delegacia especializada desde 1985. A grande maioria dos municípios, mesmo os com uma quantidade razoável de população, não têm delegacia especializada. Fora dos grandes centros então você não tem rede nenhuma. Até porque essa estrutura precisa ser construída e também as prefeituras nem sempre têm condição de manter essa estrutura”, avalia Mônica Sapucaia, advogada e pesquisadora de direito e mulheres, igualdade de gênero e políticas públicas para a equidade.

É bom lembrar, segundo os especialistas consultados, que em muitos casos, nestes lugares, o delegado de polícia age em nome do Estado, integra carreira jurídica e todas as suas decisões têm, obrigatoriamente, esteio na lei. Por isso, não se justifica impor à vítima de violência doméstica dificuldades e demora na efetivação de sua proteção.

“A decisão jurídica do STF é completamente acertada porque obviamente a questão não é a jurisdição. A dúvida é se isso se transformará numa política que ajudará as mulheres a não serem vítimas de violência ou se criará, por exemplo, outros problemas. Quem decide, qual é o tempo que essa pessoa pode ficar fora de casa? Temos que lembrar que trabalhamos também com uma população que muitas vezes não tem recurso, nem a mulher nem o homem. Então esse homem sai e ele vai para onde, será que pode ficar nesse outro lugar?”, questiona a advogada.

Em boa parte dos casos, de acordo com os advogados consultados, feito o boletim de ocorrência, em 48 horas, em média, já se tem uma decisão concedendo ou não a medida protetiva.

Mas nem todo mundo é a favor dessa medida. Quem é contra acredita que a lei é inconstitucional, porque transfere para servidores do Executivo competências designadas constitucionalmente para o Poder Judiciário. “A Lei Maria da Penha havia previsto a solução dessa questão de não termos comarcas em todos os lugares: era justamente de criar juizados exclusivos para violência doméstica em todas as cidades brasileiras. E isso não foi levado à cabo”, afirma Isabela Guimarães Del Monde, fundadora da Gema Consultoria em Equidade, sócia do TG Advogados e colaboradora do movimento MeToo Brasil.

Para a especialista, quando são transferidas competências para delegados e policiais, a Lei Maria da Penha é enfraquecida na hora em que determina a criação desses juizados, que deveriam trabalhar com toda questão integral da violência doméstica. “Os profissionais delegados e policiais não recebem formação adequada para questões de gênero e violência doméstica. Então, há muitas chances de que o delegado possa conhecer o marido da vítima - especialmente nestas cidades pequenas - e não conceder uma medida protetiva para a vítima, sem nenhum tipo de possibilidade imediata de recurso, como acontece se a medida fosse feita pelo Judiciário”, analisa.  

O debate sobre a violência contra a mulher, que tem ares de pandemia nos países da América Latina, pode ajudar a diminuir os números da violência e de mortes. Segundo dados do IPEC (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), em pesquisa publicada em fevereiro de 2021, pode-se contabilizar que a cada 1 minuto, 25 mulheres brasileiras sofrem violência. Esse dado significa que 15% das brasileiras acima de 16 anos tiveram experiências de violência física, psicológica ou sexual praticadas por homens de dentro ou próximos à família, o que equivale a 13,4 milhões de mulheres por aqui.


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Segundo os pesquisadores, a implementação da Lei Maria da Penha afetou o comportamento de agressores e vítimas por três canais: aumento do custo da pena para o agressor; aumento do empoderamento e das condições de segurança para que a mulher pudesse denunciar; e aperfeiçoamento dos mecanismos jurisdicionais, possibilitando ao sistema de justiça criminal que atendesse de forma mais efetiva os casos envolvendo violência doméstica.

O relatório "Visível e Invisível, a vitimização de mulheres no Brasil", publicado em 2021 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indicou um incremento do número de casos de violência doméstica em todo o mundo neste período, sendo as mulheres as principais vítimas.

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