Board Washing: a ameaça silenciosa à governança corporativa no Brasil 

O Brasil também possui legislação que torna os administradores e conselheiros pessoalmente responsáveis por atos de má gestão e práticas antiéticas./ Unsplash - Ruthson Zimmerman.
O Brasil também possui legislação que torna os administradores e conselheiros pessoalmente responsáveis por atos de má gestão e práticas antiéticas./ Unsplash - Ruthson Zimmerman.
A prática não só mina a confiança pública nas instituições corporativas, mas também representa um risco substancial para a estabilidade econômica.
Fecha de publicación: 24/10/2023

A integridade e eficácia da governança corporativa são tópicos de crescente importância no Brasil e em todo o mundo. No entanto, o fenômeno de Board Washing representa uma ameaça significativa à credibilidade e funcionalidade das estruturas de governança corporativa. Este artigo procura entender esse fenômeno em detalhes, focando em sua manifestação no nosso país. 

A história da governança corporativa no Brasil é profundamente influenciada pelo seu contexto econômico e político. No período pós Segunda Guerra Mundial até os anos 1980, o país experimentou um modelo econômico fortemente centrado no Estado, com várias empresas estatais dominando setores chave como petróleo, eletricidade e telecomunicações. Durante essa fase, a governança corporativa era uma preocupação secundária, já que muitas dessas empresas eram controladas pelo governo e tinham pouco ou nenhum incentivo para adotar práticas de governança robustas.

Na década de 1990, com o início das privatizações e a liberalização da economia, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ganhou destaque na regulamentação das empresas de capital aberto. No entanto, as práticas de governança ainda eram rudimentares, focando na conformidade com regulamentações existentes. Nos anos 2000, em resposta a escândalos financeiros internacionais como o caso Enron nos Estados Unidos, houve uma crescente conscientização sobre a necessidade de melhores práticas de governança corporativa. A Bolsa de Valores de São Paulo (agora B3) lançou segmentos especiais, como o Novo Mercado, com padrões mais elevados de governança, um marco na promoção da governança corporativa no Brasil.


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Entretanto, a evolução não foi linear. A década de 2010 foi marcada por grandes escândalos de corrupção e má gestão em empresas brasileiras, mais notavelmente a Petrobras. Isso apontou para lacunas significativas nas estruturas de governança existentes e levou a uma intensificação dos esforços regulatórios. A Operação Lava Jato, que começou em 2014, não apenas trouxe à tona falhas sistêmicas na governança de empresas estatais e privadas, mas também impulsionou uma revisão abrangente das práticas e regulamentações de governança corporativa no país.

Recentemente, houve um esforço em tornar a governança corporativa mais inclusiva e sustentável, com a ascensão do conceito de ESG (Ambiental, Social e Governança). Empresas e reguladores estão trabalhando para integrar questões de sustentabilidade e responsabilidade social nas estruturas de governança. A CVM e outros órgãos reguladores estão atualmente empenhados na atualização e ampliação das diretrizes de governança para incorporar essas novas dimensões, marcando uma evolução importante. Isso demonstra que, embora a governança corporativa no Brasil tenha avançado de um estágio inicial de negligência para um sistema mais sofisticado e regulamentado, ainda enfrenta desafios significativos.

Cada etapa dessa trajetória histórica oferece lições valiosas sobre como aprimorar a governança corporativa para atender às demandas em constante mudança do ambiente empresarial e social, destacando a necessidade de vigilância contínua e colaboração entre empresas, reguladores e outros stakeholders.

Em 2002, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) lançou recomendações para a governança corporativa, promovendo transparência e responsabilidade. A B3 (antiga BM&FBOVESPA) também estabeleceu níveis de governança (Nível 1, Nível 2 e Novo Mercado) com requisitos crescentes. Apesar desses avanços, escândalos como o da Petrobras e Odebrecht revelaram falhas na governança. Recentemente, houve esforços para melhorar a governança, incluindo reformas legais, adoção de melhores práticas e foco em diversidade e sustentabilidade. No entanto, desafios como o      Board Washing      exigem vigilância constante e atualizações regulatórias.

Várias teorias de governança corporativa podem ajudar a entender o fenômeno, incluindo a Teoria da Agência e a Teoria dos Stakeholders.


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A Teoria da Agência, amplamente reconhecida na governança corporativa, explora a dinâmica entre acionistas (proprietários) e gestores (diretores e conselheiros) de empresas. Ela aponta para um possível conflito de interesses entre esses grupos, resultando em decisões que favorecem os gestores em detrimento dos acionistas. Isso é particularmente relevante no contexto do Board Washing, cujo foco na aparência da governança pode superar a tomada de decisões que verdadeiramente beneficiem os acionistas.

Board Washing é um termo que surgiu recentemente para descrever uma forma específica de manipulação ou distorção na governança corporativa, para criar uma falsa impressão de eficiência no conselho de administração. Isso envolve ações que aparentam transparência, como relatórios detalhados e reuniões abertas, mas mascaram a falta de supervisão efetiva e decisões inadequadas. Essa prática pode ocorrer em diferentes níveis da organização.

A composição do conselho de administração também é vulnerável ao Board Washing. Membros "independentes" podem ter conflitos de interesse não declarados, minando a eficácia do conselho. Além disso, a manipulação de métricas de desempenho é comum, com foco em métricas financeiras de curto prazo em detrimento de questões éticas e estratégicas de longo prazo. Empresas podem alegar conformidade com padrões de governança, mas uma análise mais detalhada frequentemente revela inconsistências e lacunas significativas.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) é o principal órgão regulador do mercado de capitais no Brasil e tem um papel significativo na definição de normas e diretrizes para a governança corporativa. A CVM emite instruções e recomendações que abordam desde a divulgação de informações até a conduta dos membros do conselho de administração. O não cumprimento dessas diretrizes pode resultar em sanções que vão desde multas até a deslistagem da empresa.

Outro aspecto importante da regulação da governança corporativa no Brasil é a existência de níveis diferenciados de governança na B3 (antiga BM&FBOVESPA). Esses níveis (Nível 1, Nível 2 e Novo Mercado) estabelecem requisitos adicionais para as empresas em termos de transparência, direitos dos acionistas e governança corporativa. O Board Washing pode ser particularmente problemático aqui, pois empresas podem buscar atender aos requisitos mínimos desses níveis sem implementar efetivamente boas práticas de governança.


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O Brasil também possui legislação que torna os administradores e conselheiros pessoalmente responsáveis por atos de má gestão e práticas antiéticas. A Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/76) é uma das principais leis que regulamenta as responsabilidades dos membros do conselho. No entanto, o Board Washing pode complicar a aplicação dessa responsabilidade, pois a aparência de conformidade pode ser mantida mesmo quando ocorrem falhas de governança.

Além da regulamentação formal, existem diversos códigos e guias de melhores práticas em governança corporativa, como o Código Brasileiro de Governança Corporativa. Embora esses códigos sejam voluntários, eles têm influência considerável nas práticas de governança das empresas. A manipulação, nesse caso, pode se manifestar quando empresas afirmam aderir a esses códigos, mas não implementam suas diretrizes de forma eficaz.

Um dos desafios na regulação da governança corporativa e do Board Washing no Brasil é a existência de áreas cinzentas e lacunas na legislação e nos regulamentos.  

Um dos exemplos mais notórios de falhas na governança corporativa no Brasil é o caso da Petrobras, a gigante estatal do petróleo. Embora a empresa tivesse várias políticas de governança e ética em vigor, o escândalo da Operação Lava Jato revelou um sistema de propinas e corrupção que envolvia altos executivos e membros do conselho. Este caso demonstra como essa prática pode ocorrer em grandes empresas que, apesar de terem estruturas de governança aparentemente robustas, falham em exercer supervisão efetiva e permitir práticas empresariais éticas.

A Eletrobras, outra empresa estatal, enfrentou desafios semelhantes. Embora a empresa tivesse adotado várias medidas para melhorar sua governança, inclusive alcançando um alto nível de governança na B3, ela também enfrentou acusações de corrupção e má gestão. Nesse contexto, o Board Washing se manifestou através da promoção de uma imagem de governança forte, que não correspondia à realidade operacional e ética da empresa.


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Empresas brasileiras do setor de construção, como a Odebrecht, também têm sido palco de grandes escândalos de corrupção e governança inadequada. Muitas dessas empresas possuíam comitês de ética e conformidade que, teoricamente, deveriam supervisionar as práticas empresariais. No entanto, a existência desses comitês acabou sendo parte de um esforço de Board Washing, já que falharam em impedir práticas antiéticas.

O setor financeiro não está imune ao fenômeno. Alguns bancos brasileiros que enfrentaram acusações de lavagem de dinheiro ou práticas financeiras inadequadas tinham estruturas de governança que, ao menos no papel, pareciam estar em conformidade com as melhores práticas. No entanto, a falha em identificar e gerir riscos financeiros e éticos sugere que essas estruturas eram mais formais do que funcionais.

Socialmente, práticas de Board Washing corroem a confiança pública nas instituições corporativas. Quando as empresas projetam uma imagem de boa governança que não corresponde à realidade, isso pode levar a um cinismo generalizado sobre o papel e a integridade das corporações na sociedade.

Economicamente, podemos ter efeitos adversos tanto a curto como a longo prazo. No curto prazo, a aparência de boa governança pode inflar artificialmente o valor das ações de uma empresa, levando a avaliações de mercado distorcidas. Isso pode resultar em bolhas de ativos e, eventualmente, em correções de mercado abruptas quando a verdadeira natureza da governança da empresa é revelada. Investidores, particularmente os pequenos acionistas, podem sofrer perdas significativas, e isso pode ter um efeito cascata em toda a economia.

A longo prazo, pode minar o desenvolvimento econômico sustentável. Empresas que praticam Board Washing frequentemente negligenciam questões críticas como sustentabilidade ambiental, direitos trabalhistas e inovação em favor da manutenção de uma imagem pública positiva.


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Além disso, pode haver implicações para a política econômica e a regulamentação. Reguladores podem ser levados a acreditar que as estruturas de governança existentes são adequadas e, como resultado, podem não implementar reformas necessárias que fortaleçam a governança corporativa e protejam os interesses dos acionistas e do público em geral. 

Para lidar com as sérias implicações do Board Washing, é crucial que empresas, reguladores e stakeholders tomem medidas proativas. Uma abordagem colaborativa é fundamental para assegurar a eficácia e transparência na governança corporativa. Por exemplo, a realização de auditorias independentes e regulares no conselho de administração pode identificar discrepâncias entre a aparência e a realidade da governança. Essas auditorias devem ir além da conformidade regulatória e avaliar a eficácia do conselho em termos de supervisão estratégica e ética.

Além disso, é crucial que os reguladores revisem e atualizem as diretrizes de governança para fechar as lacunas. Isso pode incluir a definição mais clara dos requisitos para membros "independentes" do conselho e a imposição de penalidades mais severas para empresas que não cumprem as normas de governança. Também é vital que se promova uma cultura de responsabilidade e transparência, incentivando a divulgação voluntária e a adesão a códigos de melhores práticas, e não apenas o cumprimento mínimo dos requisitos legais.

Os investidores também desempenham um papel crucial. A crescente popularidade dos fundos de investimento socialmente responsáveis reflete a demanda por governança corporativa ética e eficaz no mercado. Investidores, sejam institucionais ou individuais, devem usar seu poder de voto e influência para pressionar as empresas a adotarem práticas de governança mais sólidas. Isso não apenas protegerá seus investimentos, mas também enviará uma mensagem forte de intolerância às práticas de Board Washing.

Em última análise, o combate eficaz a essa prática exigirá uma ação coordenada entre empresas, reguladores e investidores. A prática não só mina a confiança pública nas instituições corporativas, mas também representa um risco substancial para a estabilidade econômica. O que está em jogo aqui não é meramente a integridade de algumas empresas isoladas, mas a saúde e a robustez de todo o sistema corporativo e financeiro. Portanto, a ação não é apenas necessária, mas imperativa.

*Leonardo Roesler, advogado, mestre em Administração e Finanças pela Ohio University. É especialista em Direito Empresarial e Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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