Enquanto corte superior do Brasil, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) desempenha um papel crucial na interpretação e na aplicação das leis do país. Contudo, algumas de suas decisões recentes suscitam questões pertinentes acerca da coerência e da justiça de sua jurisprudência. Em particular, a decisão do STJ que autoriza a liquidação antecipada de seguro garantia/carta de fiança em execuções fiscais, conforme determinado no Recurso Especial (REsp) nº 1.996.660/RS, parece contradizer sua própria jurisprudência anterior e levanta questionamentos sobre a utilização do princípio do interesse público para fundamentar suas decisões.
A fim de compreender essa aparente incoerência, é preciso examinar o que o STJ decidiu no REsp nº 2.034.482/SP. Nesse caso, o tribunal autorizou a substituição de penhora em dinheiro por seguro garantia/carta de fiança. A distinção principal entre os dois casos é que o segundo envolve uma contenda entre empresas, enquanto o primeiro refere-se a um litígio entre a União Federal e uma empresa.
É notório que as duas decisões parecem adotar perspectivas distintas sobre a natureza e o status do seguro garantia/carta de fiança. No REsp nº 2.034.482/SP, o STJ entendeu que a fiança bancária e o seguro garantia possuem os mesmos efeitos jurídicos que o dinheiro para a garantia do juízo. Por outro lado, no REsp nº 1.996.660/RS, o mesmo tribunal permitiu a liquidação de seguro garantia oferecido pelo contribuinte antes do trânsito em julgado dos embargos à execução fiscal.
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Embora o argumento econômico não tenha sido expressamente utilizado para fundamentar a decisão no REsp n.º 1.996.660/RS, a verdade é que, se o STJ mantivesse a mesma interpretação sobre a natureza jurídica do seguro garantia/carta de fiança para litígios envolvendo a fazenda pública, como adota para o litígio entre particulares, não teria autorizado a liquidação antecipada da garantia.
Partindo do princípio estabelecido pelo próprio STJ de que seguro garantia e carta de fiança são equivalentes ao dinheiro, não haveria justificativa para autorizar a liquidação antecipada, pois essa nova situação não melhoraria a condição jurídica do credor e ainda colocaria o devedor em uma situação pior, na medida em que a caracterização do sinistro desencadearia diversas consequências patrimoniais.
No entanto, a realidade mostra que, para o STJ, no contexto de um litígio com um ente público, o seguro garantia e a carta de fiança não são equivalentes ao dinheiro. Isso ocorre porque União, Estados e Municípios podem, por força de lei, utilizar os valores depositados judicialmente em seus orçamentos.
Diante deste cenário, é incontestável que o interesse orçamentário dos entes públicos é considerado pelo STJ ao proferir essas decisões, que em alguns aspectos parecem contraditórias. Ademais, essa incoerência na jurisprudência do STJ levanta dúvidas sobre a equidade do sistema jurídico. Se o STJ trata situações semelhantes de maneiras diferentes, dependendo das partes envolvidas, isso pode gerar uma percepção de injustiça. Isso é especialmente preocupante no caso do REsp nº 1.996.660/RS, cuja decisão parece favorecer a União Federal em detrimento de um particular, sugerindo que o interesse público na arrecadação poderia se sobrepor à estabilidade econômica de uma empresa.
A doutrina oferece uma perspectiva útil sobre este tema, argumentando que a arrecadação tributária não tem status de princípio jurídico, mas se configura, tão somente, como uma função do sistema tributário. Assim, não deve servir como critério isolado de interpretação e aplicação do direito, nem tampouco fundamentar unilateralmente a modulação das decisões judiciais, como tem ocorrido em muitos casos no Supremo Tribunal Federal.
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Ao autorizar a liquidação antecipada de seguro garantia/carta de fiança em execuções fiscais, o STJ parece ter privilegiado o interesse arrecadatório do Estado em detrimento dos direitos dos contribuintes. No entanto, o interesse na arrecadação não deve ser o único critério considerado nas decisões judiciais. Outros princípios constitucionais, como a segurança jurídica e a isonomia, bem como princípios legais como o da menor onerosidade também devem ser considerados.
Passemos a analisar brevemente o impacto econômico dessa decisão, sobretudo, como isso influenciará no encarecimento nos custos de defesa judicial dos contribuintes. Quando o STJ autoriza a liquidação antecipada da garantia financeira em execuções fiscais, gera-se um efeito em cascata que atinge os contribuintes. Com a liberação dos valores assegurados antes do trânsito em julgado da decisão, as seguradoras podem enfrentar um aumento no número de sinistros, o que, consequentemente, pode levar a um aumento no preço dos prêmios de seguros garantia.
Esse aumento no preço do seguro é um custo adicional para os contribuintes que já enfrentam dificuldades financeiras decorrentes de processos fiscais complexos. Este cenário torna a busca por justiça fiscal mais onerosa, dificultando a defesa dos contribuintes e potencialmente limitando o acesso à justiça.
É vital que o STJ reconsidere sua posição sobre a liquidação antecipada de seguro garantia/carta de fiança em execuções fiscais. A aparente contradição entre as decisões aqui analisadas, além da influência excessiva do princípio do interesse público, indica uma falta de coerência na jurisprudência do STJ que pode abalar a confiança no sistema jurídico e gerar uma percepção de injustiça.
*Rodrigo Fragoas é advogado no Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados.
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