Lei de Improbidade Administrativa e corrupção

Os pontos criticados do projeto de lei são a exigência de dolo, a exclusividade do Ministério Público para a proposição de improbidade e os prazos prescricionais/Câmara dos Deputados
Os pontos criticados do projeto de lei são a exigência de dolo, a exclusividade do Ministério Público para a proposição de improbidade e os prazos prescricionais/Câmara dos Deputados
Norma tem servido para punição de desmandos e corrigir má aplicação de dinheiro público.
Fecha de publicación: 23/06/2021

A aprovação, pela Câmara dos Deputados, de projeto de lei (nº 10.887/18) que modifica a Lei de Improbidade Administrativa (LIA) tem causado muita repercussão na imprensa e sociedade, sendo por muitos rotulada como “reação à Lava a Jato” ou medida que implicará o enfraquecimento das ferramentas de combate à corrupção no país.

Por outro lado, há pouco debate sobre as razões que efetivamente levaram ao clamor da classe política e gestores públicos pela atualização da legislação. O que se vê, diante do panorama atual, é que a banalização de uma importante ferramenta de fiscalização e combate à corrupção acabou culminando na sua perda de credibilidade, gerando uma esperada reação da classe política, que busca limitar os excessos que têm sido verificados na fiscalização e controle do dia a dia dos gestores públicos e das empresas que prestam serviços à Administração Pública.


Quer saber mais? Improbidade Administrativa: Câmara aprova texto que desestimula punições


A LIA é um importante instrumento de fiscalização a favor da sociedade, haja vista a necessidade de aplicação adequada e eficiente dos recursos públicos e observância à legalidade. A Lei tem servido para correção de rumos, punição de desmandos e má aplicação de dinheiro público desde 1992, data da sua promulgação.

O ato de improbidade administrativa consiste em conduta ilícita e desonesta, passível de ser censurada com a suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade de bens, ressarcimento ao erário, multas e proibições de contratar e licitar com o poder público.

Os pontos mais criticados do projeto de lei são: a exigência de dolo (intenção) para a configuração do ato de improbidade, a concessão de legitimidade exclusiva ao Ministério Público para a proposição de ação de improbidade e a previsão de prazos prescricionais.

De maneira geral, as críticas resumem-se a vincular a “flexibilização” da LIA à proteção da própria classe política e ao estímulo à impunidade.

Porém, vários dos dispositivos do projeto de lei buscam corrigir injustiças, distorções e arbitrariedades que têm atingido gestores públicos e empresas privadas que possuem vínculos contratuais com o poder público.

A atualização da lei de improbidade administrativa tem como principal objetivo estabelecer a necessidade de dolo para a configuração do ato de improbidade, ou seja, busca-se distinguir meros equívocos administrativos de atos intencionais de desonestidade e má-fé. 

O cometimento de erros, a tomada de decisões que se mostraram equivocadas ou a falta de planejamento na gestão pública jamais deveriam ser equiparados a atos de improbidade administrativa, que possuem em sua essência e na própria semântica da expressão uma relação direta com a honradez, honestidade, retidão de caráter.

A relevante distinção entre equívocos (aos quais todos estão sujeitos) e atos de improbidade não tem sido observada na prática, especialmente após o efeito causado pela operação Lava a Jato no legítimo anseio da sociedade pelo fim da impunidade e combate à corrupção.

O gestor público que comete erros, que assume a responsabilidade pela busca de soluções para situações complexas, que precisa lidar com emergências originadas por situações alheias ao seu controle, está sujeito a processos judiciais por ato de improbidade administrativa, ainda que tenha atuado de boa-fé, sem qualquer má intenção.

Empresas que apresentam propostas comerciais para celebrar contratos emergenciais com o poder público estão sujeitas a processos judiciais por ato de improbidade administrativa, ainda que a única conduta praticada tenha sido a apresentação de proposta em atendimento a solicitação da Administração.

Mesmo divergências de critérios de orçamentação de preços levados à licitação pública, em relação aos quais as empresas ofertam descontos, podem resultar no entendimento de suposto superfaturamento, culminando no risco de a empresa ser ré em ação de improbidade.

A empresa que vence um certame licitatório e, ao longo da execução contratual, consegue otimizar a execução dos serviços, reduzir os custos inicialmente previstos, está sujeita à acusação de superfaturamento, por ter lucrado mais que o estimado inicialmente, e, consequentemente, ao ajuizamento de ação de improbidade administrativa, juntamente com o agente público supostamente “omisso” no dever de fiscalização.

As ações de improbidade administrativa podem e costumam contar com pedidos liminares de bloqueios de bens dos réus, sem que as pessoas acusadas tenham sequer a oportunidade prévia de se manifestar ou se defender. Os bens bloqueados assim permanecem ao longo de vários anos, por vezes mais de uma década, até que a ação seja julgada em caráter definitivo, não sendo raras as situações nas quais os réus comprovam, ao final, que não praticaram qualquer ato ímprobo.


Leia também: STF e STJ fixam teses para calcular condenações fazendárias


Empresas que possuem patrimônio e operações sólidas, além de uma longa lista de contratos em execução, podem ser simplesmente surpreendidas com o bloqueio da totalidade dos recursos financeiros depositados em todas as suas contas bancárias, em razão de ação de improbidade por ela até então desconhecida, amparada em suposta irregularidade da qual a empresa teria alegadamente se beneficiado por ter contratado com o poder público, ainda que a empresa não tenha tido qualquer participação na prática do ato questionado.

E os bloqueios de bens realizados sem que as partes tenham tido sequer a oportunidade de se manifestar sobre a acusação são, por vezes, superiores ao valor total do contrato celebrado com o poder público, resultando na paralisia de todo o capital de giro necessário à continuidade das operações empresariais.

A imprensa tem repercutido negativamente a exigência de comprovação de dolo, prevista no projeto de lei, como mecanismo de incentivo à impunidade. Ora, em algum momento se reputa razoável condenar um gestor público e uma empresa privada por ato de improbidade, desonestidade, se não tiver sido comprovada a má-fé, a intenção de praticar um ilícito?

É justamente em razão da exigência de demonstração de dolo, de intenção de praticar um ato ilícito, que o projeto de lei altera o polêmico artigo 11 da LIA, que atualmente prevê a possibilidade de condenação por ato de improbidade administrativa na genérica hipótese de violação aos princípios da “honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições”, comportando imenso subjetivismo na sua aplicação.

O contexto de ameaça, mesmo àqueles que não agem de má-fé, se agravou de tal forma que atualmente é comum constatar a existência do chamado fenômeno do “apagão das canetas”, que leva gestores públicos a se omitirem, evitarem a tomada de decisões em relação às quais possuem convicção, por se sentirem intimidados com o risco de ações de improbidade e sanções aplicadas por órgãos de controle.

Aqueles que trabalham e se relacionam com a Administração Pública sabem que há uma paralisia ocasionada pelo medo da atuação dos órgãos de controle, com destaque especial para as ações de improbidade administrativa.

A atribuição de competência exclusiva ao Ministério Público para o ajuizamento de ações de improbidade tem a finalidade de evitar que divergências político-eleitorais resultem na utilização, pelos entes federativos (União, Estados, DF e Municípios), de ações de improbidade como meio de retaliação política. Afinal, sempre será permitida a representação (denúncia) ao Ministério Público de toda e qualquer irregularidade da gestão anterior.

Por fim, a propósito da celeuma em torno da previsão de prescrição da ação de improbidade administrativa, observa-se que a legislação em vigor já estabelece prazos prescricionais confusos, contados do término do exercício do mandato do gestor público ou da data de apresentação de prestação de contas final (5 anos), além de fazer remissão a prazos prescricionais de leis específicas para faltas disciplinares.

Nesse particular, o projeto de lei apenas esclarece e estabelece prazos prescricionais claros de 10 e 20 anos, que permanecerão suspensos durante a fase de inquérito (investigação) do Ministério Público.

São compreensíveis as reações contra alterações legislativas que possam reduzir o número de ações de improbidade e condenações finais, mas é fundamental ressalvar que mesmo os mecanismos de fiscalização e controle devem respeitar princípios básicos do Estado Democrático de Direito, como a presunção de inocência, segurança jurídica e duração razoável dos processos.

*Anderson Novais é sócio do Fialho Salles Advogados.


Veja também: O que mudou no país nos dez anos da Lei da Ficha Limpa

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.