Obrigar empresas de aplicativo a registrar profissionais é retrocesso

A condenação da Uber e da Rappi, e a obrigação de registrar os motoristas como empregados, também podem ter implicações significativas para outras empresas de tecnologia e aplicativos que operam no Brasil./Canva
A condenação da Uber e da Rappi, e a obrigação de registrar os motoristas como empregados, também podem ter implicações significativas para outras empresas de tecnologia e aplicativos que operam no Brasil./Canva
Não cabe aplicar soluções antigas para relações novas de trabalho.
Fecha de publicación: 29/09/2023

Nas últimas semanas, duas decisões polêmicas reacenderam o debate sobre o que tem se chamado de regulamentação do “não emprego”. No primeiro caso que veio à tona, a Uber foi condenada a pagar R$ 1 bilhão por danos morais coletivos e obrigada a registrar todos os seus motoristas aplicando a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para a relação. Já na última semana, a 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) reconheceu o vínculo empregatício entre um entregador e a Rappi, empresa de delivery de comida.

 

As duas decisões trazem impacto significativo sobre a calorosa discussão já existente acerca dos direitos trabalhistas no setor de trabalho por plataformas do País. Enquanto alguns elogiam as decisões como um avanço na proteção dos direitos dos trabalhadores, outros temem que elas possam resultar em uma onda de desocupação incontrolável, impactando na renda das famílias e contribuindo com o empobrecimento da população, gerando impacto econômico e social brutal. Não cabe aplicarmos soluções antigas para relações novas de trabalho, essa conduta pode causar desequilíbrio e retrocesso, inclusive do ponto de vista das leis trabalhistas.

 

A condenação da Uber e da Rappi, e a obrigação de registrar os motoristas como empregados, também podem ter implicações significativas para outras empresas de tecnologia e aplicativos que operam no Brasil, uma vez que levantam questões sobre a natureza das relações do trabalho nesses setores e a necessidade de regulamentações mais claras. 


Sugestão: Existe subordinação no serviço de entrega por aplicativos?


Um primeiro ponto a se destacar é que essas decisões vão na contramão da grande maioria das ações que as precederam. Há muitas ações coletivas que já vinham sendo propostas no mesmo sentido e já haviam sido rejeitadas pela Justiça do Trabalho. Além disso, o próprio Supremo Tribunal Federal já vem se posicionando no sentido de reconhecer que as novas relações de trabalho não se confundem com a relação de emprego. Mas não somente isso, as decisões também devem ser analisadas sob a ótica social, uma vez que não estão sendo levadas em conta as novas formas de organização de trabalho e até mesmo os avanços tecnológicos que a humanidade vive.

 

A decisão judicial do caso Uber foi anunciada na sexta-feira (15) após um processo que se arrastava por anos e envolvia ações de diversas entidades sindicais, organizações de defesa dos direitos dos trabalhadores e motoristas da empresa. O processo argumentava que os motoristas deveriam ser considerados como empregados da empresa, tendo direito a benefícios e proteções trabalhistas previstos na CLT. 

 

O juiz deste caso, Maurício Pereira Simões, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, ao proferir sua sentença destacou que a empresa de transporte por aplicativo não pode ser vista apenas como uma plataforma tecnológica, mas sim como uma empresa que exerce controle direto sobre seus motoristas. Ele argumentou ainda que, de acordo com a legislação brasileira, os motoristas devem ser considerados empregados da empresa e não prestadores de serviços autônomos, como a Uber alegava. 

 

A sentença pretende entregar algo que não está alinhado nem com o modelo de negócios da Uber e nem com a expectativa dos próprios profissionais. Pesquisa recente do Datafolha com trabalhadores de plataformas apontou que três em cada quatro entrevistados não deseja trabalhar com carteira assinada e prefere manter a autonomia para escolher os horários e recusar corridas ou entregas, mesmo que isso tenha como consequência não ter direitos trabalhistas. 

 

O posicionamento faz sentido à medida que, além de muitas vezes essa atividade ser realizada como renda extra, ela acontece sem exclusividade e com a prestação de serviços para diversas empresas simultaneamente, cenário que não se sustentaria no caso da relação com vínculo de emprego.


Leia também: O longo caminho da reforma trabalhista no STF


Impacto social reverso 

 

É preciso ponderar e mensurar o impacto reverso das duas decisões. Precisamos refletir e responder as seguintes perguntas: o que acontecerá com milhares de profissionais e famílias caso as empresas decidam encerrar as operações no Brasil? E qual o impacto de mercado e social se a decisão reverberar em outras plataformas que adotam esse modelo de negócio e trabalho?

 

A matéria é multifacetada e exige uma análise mais abrangente, que não apenas do ponto de vista do Direito Trabalhista. É claro que as leis trabalhistas devem ser respeitadas, mas a reflexão principal que proponho aqui é mais ampla: é preciso analisar o papel social e econômico que esta modalidade de trabalho apresenta nos últimos anos, gerando impactos sociais e econômicos importantes para nosso país.

 

O outro lado da moeda 

 

Em resposta à decisão, a Uber anunciou que pretende recorrer com o argumento de que seus motoristas valorizam a flexibilidade oferecida pelo modelo de trabalho atual e que a decisão judicial pode prejudicar a renda de milhares de motoristas parceiros em todo o Brasil.

 

A empresa se posiciona como uma plataforma que aproxima pessoas que procuram pelo transporte privado aos motoristas que oferecem esse serviço a condições muito acessíveis e práticas, o que parece atender a todos os agentes envolvidos no negócio. A pesquisa do Datafolha ouviu 2,8 mil motoristas de aplicativo e também revelou que esses profissionais pleiteiam mais garantias de proteção social desde que não comprometam a autonomia que o trabalho mediado por plataformas proporciona. 

 

É preciso educação para uma sociedade como a nossa que já tem um viés empreendedor e, muitas vezes, seus cidadãos acumulam duas ou três fontes de renda e assim querem permanecer. Balizar tudo de maneira simplória e sem analisar o atual contexto social e econômico de nosso país pode ser um retrocesso com sérias consequências, principalmente, para esses brasileiros. A discussão é muito mais sobre como garantir acesso a direitos sociais básicos nas novas formas de organização do trabalho do que sobre direitos inerentes ao vínculo de emprego que não é o que busca nem o contratante e nem o contratado. 

 

A Rappi expressou discordância com essa decisão e anunciou sua intenção de recorrer. A empresa também destacou que possui uma decisão favorável da Justiça do Trabalho da 2ª Região, que considerou a inexistência de vínculo empregatício com entregadores em uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho.

 

É importante notar que casos como esses têm implicações significativas para o modelo de negócios das plataformas, pois se os trabalhadores forem classificados como empregados, as empresas terão que arcar com custos adicionais, como  férias remuneradas, décimo terceiro, FGTS, ainda que esse custo não atenda à demanda da grande maioria dos profissionais envolvidos.


Confira: Brasil abriu precedente na regulamentação de aplicativos de transporte: o que falta fazer?


Discussão ao redor do mundo

 

Esse debate sobre a relação entre entregadores e plataformas não é exclusivo da Uber e  Rappi e tem ocorrido em todo o mundo, levando a decisões judiciais variadas em diferentes países. Em muitos lugares, governos, empresas e sindicatos estão buscando formas de equilibrar a flexibilidade que essas plataformas oferecem aos trabalhadores com a necessidade de garantir direitos mínimos e proteção social.  É um tópico em constante evolução, sujeito a mudanças legais e regulatórias à medida que a sociedade busca encontrar um equilíbrio adequado entre inovação tecnológica e direitos trabalhistas.

 

Os dois casos continuarão a ser acompanhados de perto, pois lançam luz sobre a complexa interseção entre tecnologia, economia, direitos trabalhistas e sociais em uma era de transformação digital.

 

*Érika de Mello, Head de Direito Trabalhista do PG Advogados.

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