Os novos meios digitais abriram o debate sobre como proteger os direitos autorais contra a reprodução e distribuição de produtos sem autorização dos autores, bem como os direitos adquiridos pelos distribuidores para transmitir —sob demanda ou ao vivo— as diferentes produções em um mundo globalizado.
Na ausência de marcos legais flexíveis que dêem às autoridades ferramentas para atuar no ciberespaço, que é multijurisdicional, suas ações devem ser criativas. Recentemente, o Peru se tornou o primeiro país da América Latina a ordenar o bloqueio de domínios da Internet que transmitiam conteúdo sem ter o direito de reproduzir o conteúdo.
O caso: The Pirate Bay
Jogos de futebol e quase todos os esportes podem ser encontrados em sites não autorizados pelos detentores dos direitos de transmissão. A diversidade de conteúdo e páginas torna a localização de sites "piratas" não apenas difícil, mas em muitos casos até impossível. No Peru, o Instituto Nacional de Defesa da Concorrência e Proteção da Propriedade Intelectual (Indecopi) desempenhou um papel importante na criação de um precedente na proteção dos direitos autorais.
Em uma de suas tentativas de mudar seu país de domínio para contornar os bloqueios, o Pirate Bay decidiu montar sua página no Peru. Mas esta página, cujo cerne é o download ilegal de conteúdo, teve investigações anteriores contra ela, na Suécia, de onde é originária.
Quando o mecanismo de busca de conteúdo hospedou seu domínio no Peru, a Rede Científica Peruana (RCP) foi avisada pelo Indecopi sobre a violação de direitos autorais que estava cometendo. O RCP, cabe destacar, é responsável no país por autorizar domínios de Internet sob o nome ".pe".
A Rede foi avisada pelo Indecopi. Este último ordenou a suspensão do domínio por responsabilidade solidária e, diante disso, o Pirate Bay rapidamente hospedou sua página na Guiana para continuar operando.
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A estratégia
Ivo Gagliuffi, ex-presidente do Indecopi e sócio do escritório Garrigues (Peru), explica que no país as regras (Decisão 351 da Comunidade Andina e, a segunda, é i Decreto Legislativo 822) que concentram a proteção dos direitos autorais foram estendidas ao campo da internet e, portanto, ao streaming e consumo de conteúdos multimídia como filmes, podcasts, esportes, teatro, entre outros.
Gagliuffi destaca que o Peru foi pioneiro na defesa dos direitos autorais nas plataformas digitais e de streaming.
"O Indecopi interpretou que a regulamentação local - no momento de estabelecer que o direito de reprodução - incluía as esferas física e virtual e que a comunicação pública se encontra em todas as plataformas. Isso poderia proteger os direitos autorais e conexos mesmo em streaming", disse o ex-presidente da Indecopi em entrevista a LexLatin.
Gagliuffi explica que o Indecopi optou por ter uma estratégia porque o site, como a maioria dos piratas, tem endereço em outro país ou é muito difícil encontrar o responsável direto pela distribuição desses conteúdos.
Diante da dificuldade de sancionar, diretamente, quem administrava ou era proprietário da página, o Indecopi, sob a diretriz da responsabilidade solidária, encontrou na figura dos Provedores de Serviços de Internet (ISP) uma forma de lidar com a pirataria.
“A lei peruana prevê a responsabilidade solidária dos ISPs, portanto, denunciou o Pirate Bay e também pôde denunciar o ISP que hospedava o site, porque conseguiu estabelecer que tinha responsabilidade solidária na prática pela violação de direitos autorais de terceiros”, acrescentou o ex-presidente do Indecopi.
A lei peruana estabelece que, desde que haja qualidade colaborativa, é possível ordenar a um provedor o bloqueio de uma página e aplicar o critério de responsabilidade solidária.
Daniela Supo, associada da Rodrigo, Elias & Medrano e especialista em propriedade intelectual, explica que a responsabilidade solidária, na sua qualidade de coadjuvante, só pode ser aplicada se ficar provado que o ISP tem conhecimento da violação dos direitos de um terceiro.
“Para que haja responsabilidade solidária imputável, é necessário provar que o suposto autor tinha conhecimento da prática do ato praticado: a fraude”, indica Supo.
Na ausência de uma Lei contra a pirataria ilegal, o Indecopi teve que usar a interpretação do marco regulatório que protege os direitos autorais.
Nesse cenário, ambos os especialistas concordam que há dois casos que mostram como o Peru agiu contra a pirataria de streaming, seja sob demanda ou transmissão ao vivo.
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Jurisprudência em GoDaddy e RojaDirecta
GoDaddy é uma empresa de registro de domínio na internet, que foi condenada a derrubar uma série de páginas que reproduziam conteúdo sem autorização e direitos autorais, bem como direitos conexos em sua modalidade de transmissão de conteúdo.
Este caso representou um marco, explicam os especialistas, porque a empresa não estava domiciliada no Peru e, portanto, a regulamentação não poderia ser aplicada a uma empresa como esta que tem registro nos Estados Unidos.
“Esta empresa levanta as páginas, mas como ato de boa-fé, pois a medida cautelar foi baseada no artigo 39 do decreto 822, mas não contava com enforcement, não teve como executá-la, embora se baseasse em responsabilidade solidária, não havia como executá-la”, diz Supo.
Nesse caso, foram as políticas de proteção de direitos autorais da GoDaddy que permitiram derrubar as páginas e não as regulamentações no Peru. O que o Indecopi fez foi realizar tarefas de vigilância que lhe permitiram identificar o caso.
Algo semelhante aconteceu com o RojaDirecta, um site que oferece acesso a transmissões ao vivo de partidas de futebol ao redor do mundo. Este é um dos principais casos de bloqueio de sites de transmissão ao vivo no Peru. Neste caso, a Indecopi também assumiu a variante de responsabilidade solidária que os ISPs têm para proceder à suspensão dos conteúdos aí transmitidos.
“A Liga Espanhola de Futebol pede ao Indecopi em 2018 para bloquear o RojaDirecta, mas o que o Indecopi faz? A Roja Directa não existe legalmente, é pirata, o que faz é recorrer aos ISPs e pedir que bloqueiem a página”, explica Gagliuffi.
O caso RojaDirecta abriu um debate sobre a neutralidade da rede, o que implica que todos os provedores de serviços de internet e governos garantam o acesso a todos os conteúdos e serviços oferecidos pela rede.
No entanto, o ex-presidente do Indecopi explica que a neutralidade da rede não é quebrada e, pelo contrário, um site de internet que reproduza conteúdo não autorizado pelo autor ou por quem detém os direitos de transmissão não tem a possibilidade de aplicar esse critério.
“Uma das exceções é que haja um mandato judicial ou administrativo que determine que este site está praticando um ato ilegal, então não há neutralidade de rede, pelo contrário, o pirata está violando os direitos autorais de terceiros e, portanto, não tem direito à neutralidade da rede”, afirma Gagliuffi.
Como resultado dos três casos citados, o Indecopi tem se esforçado para aproximar ISPs e produtores de conteúdo para que as práticas de direitos autorais façam parte de suas políticas internas, mas ainda não há legislação ad hoc que envolva o combate à pirataria, especialmente a pirataria digital.
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Dívidas regulatórias
Daniela Supo afirma que a maior parte das ações do Indecopi se baseia em um único artigo: 39 do Decreto 822, que precisa ser ampliado em uma legislação que integre a realidade interconectada e defina mais claramente as responsabilidades dos provedores de internet, para que a proteção dos direitos autorais não seja apenas uma política interna das empresas, mas uma obrigação estabelecida na legislação.
“No Peru seria bom ter uma série de diretrizes para que (ISPs) atuem em conformidade, para que de certa forma sejam obrigados a ter mecanismos de controle”, diz o especialista.
Em janeiro de 2020, a presidência do Conselho do Indecopi apresentou uma proposta para Fortalecer a Observância dos Direitos de Propriedade Intelectual. O documento indica que uma das normas a serem estabelecidas é o programa de recompensas. Isso se basearia na obtenção de informações por meio dos cidadãos para identificar "centros de produção, comercialização, distribuição ou geração ilegal de conteúdo protegido".
O ex-presidente do Indecopi explica que esse programa é semelhante ao usado em Taiwan, onde a pirataria física e digital foi reduzida por meio do sistema de recompensas.
“Na prática, as sanções não estão sendo dadas, as páginas são bloqueadas, mas os infratores não são sancionados, permanece aquela sensação de impunidade. Esse sistema permitiria identificar os responsáveis diretos pela distribuição, reprodução e transmissão ilegais de conteúdo na internet”, afirma Gagliuffi.
Com a proposta apresentada em 2020 pelo Indecopi, seria dado um passo para concentrar não só o combate à pirataria digital no campo administrativo, mas também penal, uma vez que as violações de propriedade intelectual e direitos autorais são consideradas no Código Penal e, sob alguns agravantes, implicam sanções com prisão.
No entanto, Gagliuffi e Supo concordam que nem o Congresso nem o atual governo têm como prioridade a promoção do projeto de lei contra a pirataria, incluindo sua variante digital.
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