Gestão menstrual como um direito reconhecido para as mulheres

Menstruar faz parte do ciclo da vida. Em média, se somarmos o tempo que uma mulher passa menstruando, isso varia de 3 a 8 anos de vida. /Canva.
Menstruar faz parte do ciclo da vida. Em média, se somarmos o tempo que uma mulher passa menstruando, isso varia de 3 a 8 anos de vida. /Canva.
Até agora, o mercado de trabalho é regido por regulamentações que seguem uma abordagem predominantemente masculina. Isso exclui as mulheres e seu ciclo biológico, o que dificulta o acesso às oportunidades.
Fecha de publicación: 24/03/2023

Por que falar de menstruação e insistir para que ela seja um tema central na conquista de direitos?

Porque faz parte do ciclo de vida das mulheres e pessoas que menstruam; porque, em média, esse grupo ― que representa a metade da população do planeta ― o faz por três a oito anos e porque evitar sua gestão, por meio de uma política integral, agrava as condições de pobreza e discriminação em que vivem as mulheres.

Menstruar, processo biológico natural, torna-se um ato político quando não há garantias de fazê-lo de forma digna e em condições justas. Basta acompanhar o debate em torno da licença menstrual - a Espanha acaba de aprová-la, por exemplo - para entender como iniciativas, aparentemente positivas, podem ser estigmatizantes para quem menstrua, como explicam Rachel B. Levitt e Jessica L. Barnack-Tavlaris, especialistas no assunto.

As mulheres evitam falar sobre dores ou desconfortos, sejam eles leves ou intensos, como no caso do diagnóstico de endometriose, por medo de se colocarem em uma situação de diferença e discriminação.

Países da região como Peru, México, Brasil e Colômbia emitiram alguns projetos para enfrentar o tema com uma legislação que proponha o subsídio ou elimine o imposto sobre produtos menstruais e até um pronunciamento em nível constitucional. Esses avanços, que às vezes ficam apenas no papel por não serem regulamentados, como é o caso do Peru, são insignificantes diante das mudanças estruturais que deveriam ser realizadas. Cecilia Kalach, advogada da Suprema Corte do México e do Conselho do Judiciário, explica:

“As legislaturas, congressos e governos colocam a medalha de 'nós somos os melhores' ao eliminar o imposto sobre produtos (menstruais) quando não percebem que a pobreza para acessá-los é estrutural e para enfrentá-la eles têm que mudar muitas coisas. O que precisamos é partir para uma nova compreensão do que é a menstruação e que vai acontecer quando levarmos a sério os programas de educação sexual, reprodutiva e menstrual, por exemplo; quando levarmos a sério como a medicina aborda a menstruação, quando levarmos a sério como os locais de trabalho a abordam.”

No Brasil, a advogada e ex-deputada federal, Marília Arraes, diz que a luta das mulheres começa finalmente a dar frutos. Ela comemora a aprovação da Lei da Dignidade Menstrual, de sua autoria. “Foi um processo muito duro de debate no qual mulheres de todas as colações partidárias se uniram em torno do tema e vencemos até mesmo o veto que havia sido aplicado pelo ex-presidente Bolsonaro”, afirma.


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Com a lei em vigor, foi regulamentado, no dia 8 de março, o Programa Nacional de Proteção Menstrual, que combate a precariedade menstrual, como a falta de acesso a produtos de higiene. Marília Arraes conta que foi uma luta imensa no Congresso Nacional e diz que ainda é necessário fortalecer a bancada feminina e a ampliação da capacidade de articulação dessas parlamentares para que a menstruação continue envolvida na legislação nacional e deixe de ser tratada como um tabu.

“As discussões estão avançando e ganham cada dia mais corpo exatamente por conta da presença e luta aguerrida de muitas mulheres parlamentares, independentemente de partidos. A união da sociedade civil organizada, em especial dos coletivos feministas e das universidades, é também essencial para esse avanço ser permanente e contínuo”, diz.

Kalach, especialista em investigar a implementação de políticas públicas para garantir o direito à menstruação digna ou a justiça menstrual aplicada ao contexto mexicano, garante que uma iniciativa sobre o tema pode gerar mudanças se focar em problemas de longo prazo. Algo tão pragmático e urgente quanto abordar, primeiro, a infraestrutura educacional.

“Por exemplo, no México, 17% das escolas de educação básica não têm banheiros. Como podemos encorajar uma menina a frequentar a escola se ela não tem um banheiro para trocar seu coletor ou absorvente ? Outro dado é que 32% das escolas de educação básica não têm água diariamente. Da mesma forma, como eu quero que uma menina consiga lidar com a sua menstruação na escola se ela não tem água?”

Segundo Diana Luque, antropóloga e especialista em governo e políticas públicas na Colômbia, gerar um subsídio para esses produtos implica um equilíbrio no desenvolvimento da economia para as mulheres, mas não garante seus direitos, nem econômicos nem sociais.

“Permitir que haja um subsídio ajuda a dar dignidade à gestão menstrual, mas não só isso, à saúde da mulher como um todo. Agora, isso é uma questão básica de dignidade e, como sociedade, devemos buscar algumas garantias mínimas de dignidade e bem-estar. Justamente a gestão menstrual está ligada a isso”.

Em um mundo capitalista, vamos começar com direitos econômicos

“Menstruar custa caro, isso é indiscutível. Representa um gasto muito significativo para mulheres e pessoas que menstruam, embora varie muito em função do método de higiene, do tipo de sangramento ou da duração de cada menstruação, mas que em média pode chegar a US$ 2.100 ao longo de nossas vidas férteis”, explica Desirée Aehl, advogada especializada em violência de gênero na Espanha.

Atualmente, apenas a Irlanda e o Reino Unido têm subsídio total para produtos menstruais, enquanto França, Alemanha e Portugal mantêm algum imposto reduzido (5%, 7% e 6%, respectivamente).

“Na Espanha, desde setembro de 2022, após inúmeras tentativas, uma das maiores demandas do movimento feminista finalmente foi cumprida, que é reduzir o IVA dos produtos menstruais de 10% para 4%, considerando que não são luxo, mas produtos de primeira necessidade”.

No entanto, o impulso que as políticas fiscais dão à menstruação é insuficiente para que ela se dê com dignidade. Alcançar esse objetivo requer outras mudanças que acontecem, segundo as especialistas, por meio do acesso aos serviços, educação e conscientização sobre a menstruação.

A busca não é apenas conseguir menstruar em condições ótimas sem impactar a economia das mulheres. Trata-se de transformar o sistema almejando “justiça trabalhista e educacional de mãos dadas com o desenvolvimento de um programa de atenção integral”, destaca Cecília Kalach.

O que a advogada mexicana levanta está diretamente relacionado ao que é reconhecido por organizações como a CEPAL, as Nações Unidas e o Banco Mundial como a 'feminização da pobreza'. Ou seja, uma tendência marcada pela desigualdade econômica em que as mulheres são mais prejudicadas: salários mais baixos, maior carga de trabalho doméstico não remunerado e menor poder aquisitivo. Tudo isso se intensificou devido à crise de saúde causada pela COVID-19.

Enquanto 21 países do mundo já reconheceram o impacto negativo da taxação de produtos menstruais, como observou Adriana García Jiménez, assessora do Conselho para prevenir e eliminar a discriminação na Cidade do México. Esse número é reduzido a quase um terço dos países que consideraram a menstruação e seus sintomas, especialmente se incapacitantes, como motivo de licença.

A Espanha se tornou recentemente o primeiro Estado da União Europeia a promulgar um regulamento neste sentido. Para Desirée Aehl, atualmente advogada do Sindicato Geral dos Trabalhadores da Catalunha, essa medida dá visibilidade à menstruação incapacitante.

“Acho que é uma medida que torna visíveis as mulheres e pessoas que menstruam que estão passando por uma menstruação incapacitante. Ou seja, dor intensa que vem acompanhada de cólicas, tonturas, vômitos e até desmaios, o que é conhecido como dismenorréia. Essa manifestação afeta um terço das mulheres e pessoas que menstruam. Portanto, a situação de incapacidade temporária não é concedida pelo simples fato de estar menstruada, mas deve haver um diagnóstico do grau de incapacidade e isso deve ser refletido no seu histórico médico.”

O que a advogada espanhola aponta ao final é justamente um dos aspectos que problematizam a medida, que entra em vigor em junho deste ano: a medicalização da menstruação, isolada das outras dimensões (psicoemocional e sociocultural) pelas quais a menstruação, sem considerar em todos os níveis a violência ginecológico-obstétrica a que geralmente estamos expostas quando buscamos atendimento e diagnóstico médico.

Outro aspecto crítico é a discriminação no local de trabalho. O Japão, o primeiro país a decretar essa medida, implementada em 1947, é um exemplo. Embora pioneira e referência para outros Estados como Coreia do Sul, Indonésia e Zâmbia, no Japão a licença menstrual não surtiu o efeito esperado: as mulheres não quiseram usá-la. Por quê? Cecilia Kalach, especialista em justiça menstrual, nos diz:

"Quando as mulheres são questionadas por que não usam a licença, elas respondem: será que não percebem que se eu não for trabalhar durante o meu período menstrual, mesmo que seja muito doloroso, me discriminam, tiram sarro de mim, me consideram fraca? Não querem nos contratar."

Na Cidade do México, uma iniciativa nesse sentido está sendo discutida no Congresso Estadual, e Kalach faz uma crítica contundente:

“Para optar pela licença ― caso ela seja aprovada pelo Congresso ―, a pessoa que menstrua, cujas dores e sintomas sejam incapacitantes, deve apresentar atestado médico. Isso implica passar por uma consulta médica, passar pelos altos índices de violência ginecológico-obstétrica que se registram no México, especialmente se envolve corpos dissidentes e mulheres trans, e esperar por um diagnóstico que, para endometriose, pode levar até 8 anos de avaliações. Por que esta falha do sistema? Por que o trabalho legislativo se concentra em regulamentar iniciativas pouco funcionais para uma transformação integral? É provável que não seja usada por ninguém e é uma ferramenta para garantir que as leis sejam criadas, mas não usadas.”

Para Diana Duque, fundadora da página de Estudos de Gênero na América Latina (EGAL), a medida sobre a licença menstrual aplicada na Colômbia, embora atenda a uma população vulnerável como meninas e adolescentes, é discriminatória por focar apenas nesse grupo e querer resolver a evasão devido à menstruação. Sem considerar outros aspectos fundamentais, como a infraestrutura educacional e comunitária e a ausência de educação sobre sexualidade e menstruação.

“Há muitas mulheres para quem a menstruação é incapacitante e isso não permite que tenham uma participação normal no trabalho e no mercado de trabalho. Estabelecer, assim, a garantia de que terão licença menstrual, ou seja, que quando menstruarem estarão em casa, será um ato mínimo de reconhecimento. Porém, aplicá-lo apenas ao ambiente escolar é uma figura de exclusão, pois deixa de fora outras mulheres e pessoas que menstruam na fase adulta que estão passando por isso.”


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Quais os próximos passos?

"A menstruação não é apenas uma questão de mulheres ou pessoas que menstruam, ela afeta a todos nós", diz Desiré Aelh. A chave, concordam as três especialistas, está nos esforços de sensibilização e educação, não só no campo educacional, mas em todos os espaços de troca, essencialmente no local de trabalho. Segundo Cecilia Kalach, isso se reflete da seguinte forma:

“Neste sistema capitalista cruel, tudo o que tem a ver com gratificações, salários ou promoções, ou seja, subir de cargo na empresa, está intimamente ligado ao tempo de trabalho. Então, se eu já tenho uma desvantagem em relação aos homens por uma questão estrutural, como vou optar por um expediente como a licença, que vai me colocar em desvantagem imediata? Temos que entender que a licença menstrual não vai funcionar se não forem implementadas outras medidas que possam proporcionar segurança, como, por exemplo, programas de conscientização sobre transtornos e doenças relacionadas à menstruação, programa de educação dentro dos espaços de trabalho, entre outras.”

Em sua experiência de trabalho estratégico no setor corporativo, Diana Duque resgata o impulso transformacional que algumas empresas estão dedicando para práticas que atendam às necessidades pessoais de sua equipe.

“Boas práticas que transcendem as leis estão sendo implementadas para atender às necessidades das funcionárias. Algumas delas apostam na humanização das suas necessidades, dando reconhecimento e diligência ao que possam necessitar para o desempenho das suas funções numa cultura de bem-estar.”

Diante disso, recomenda não esperar pelo Estado da Colômbia, mas implementar, internamente, ações e boas práticas para reconhecer as necessidades de saúde das mulheres trabalhadoras. Isso contribuirá para sustentar e impulsionar os vanços para legitimar e visibilizar os direitos das mulheres.

“A educação para a cidadania será outro componente essencial. Que seja uma educação baseada em empatia e equidade de gênero. Porque além de pensar em fazer uma lei, você tem que pensar em como transformar o meio social para que ela tenha um ponto de apoio. Assim, os avanços do mundo corporativo podem continuar e quando chegarem ao estágio de socialização no sistema de saúde, com outras instituições ou com a comunidade, será mais suportável e até eficaz. Terá o efeito transformador. Eu digo: vamos fazer tudo, vamos continuar com os avanços, mas vamos educar, por favor, vamos educar.”

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