A decisão do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) em aplicar uma multa de R$ 783 milhões a três das principais empresas de telecomunicações brasileiras mostra que o tribunal usará de regras estritas para as formações de consórcios no país, envolvendo principalmente empresas que já concentram parte do mercado.
Elas terão de tomar cuidados cada vez maiores para justificar o uso deste dispositivo. Em uma das teses mais relevantes do ano, a decisão unânime dos conselheiros apontou que estes consórcios são legais e podem ser constituídos sem prévio aviso ao conselho — mas que isso não impede a aplicação de sanções, caso uma conduta anticoncorrencial fique clara.
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“O Cade deixou claro que, apesar de um consórcio ser presumivelmente lícito, se as partes têm uma posição dominante, elas passam a ter responsabilidades maiores de apresentar justificativas para que o consórcio seja essencial e estritamente necessário", explica Eric Hadmann, professor e sócio do Hadmann, Herrera & Dutra Advogados. “Isso criará às empresas o ônus de se mostrar a necessidade do consórcio”, complementa Ticiana Lima, sócia do escritório Vinicius Marques de Carvalho Advogados. “Algo que antes não se fazia”.
O caso
O processo envolve um pregão feito pela ECT (Empresa de Correios e Telégrafos) para garantir a conexão de unidades prediais da empresa em todo o país por cinco anos. Na ocasião, Claro, Oi Móvel e a então Telefonica (hoje Vivo) formaram o Consórcio Rede Correios para competir no pregão, que foi vencido pelo grupo. Coube a uma competidora menor, a BT, abrir o processo, alegando que as três unidas, representantes de mais de 90% do mercado, impuseram dificuldades às outras concorrentes.
Já em março de 2021, a Secretaria-Geral do Cade indicou que as empresas deveriam ser multadas em 4% do faturamento (caso de Oi e Telefônica/Vivo), e 5% (Claro). Para eles, as empresas se valeram de um dispositivo legal, o consórcio, para agir de maneira desleal. “Diante da atuação verticalizada, constatou-se uma estrutura de incentivos para o exercício abusivo do poder de mercado por meio da adoção de práticas discricionárias anticompetitivas”, escreveu a Secretaria-Geral.
O voto da conselheira relatora, Paula Farani, deu um novo tom à ação das empresas. “Trata-se, portanto, de uma conduta com efeitos semelhantes a um cartel, uma vez que restringe a concorrência horizontal e os rivais agem de forma coordenada, embora com este não se confunda”, escreveu. Apesar do voto, em nenhum momento o conselho igualou o consórcio (quando empresas se unem em um esforço de objetivo comum, mas cumprindo papéis distintos) com um cartel (onde empresas se unem exclusivamente para tratar de ajuste de preços).
Em seu voto-vista, o presidente do Cade, Alexandre Cordeiro, acompanhou o voto da relatora, divergindo apenas sobre a dosimetria da pena. Ele disse não entender que este seja um caso de cartel hardcore e, portanto, isso não seria um ilícito per se.
“Não há aqui nenhuma intenção deste conselho em tipificar consórcio como sendo alguma coisa ilícita", analisou. “Mas é importante que se saiba que fazer um consórcio com os três maiores concorrentes, com percentual acima de 90% do market share, tem que se tomar cuidado muito grande para que não haja fechamento de mercado e diminuição da concorrência”. Para ele, a “conduta concertada” seria uma infração à ordem econômica, com pena baseada no último faturamento bruto antes da abertura do processo, em 2015.
O conselho concluiu que a conduta coordenada, no momento de formação do consórcio, instrumentaliza condutas unilaterais das participantes vencedoras, tais como elevação de barreiras para a entrada de concorrentes e a recusa em contratar na licitação. As empresas deverão também demonstrar com documentação anterior à formação do consórcio que não há outra maneira de se concorrer no caso específico sem a formação de um esforço conjunto.
A linha de raciocínio foi publicamente rebatida pela Oi. “[A relatora] desconsiderou por completo que a Oi não possuía capacidade técnica para atender sozinha ao objeto licitado”, escreveram os advogados da empresa em uma manifestação. “A relatora adotou premissas equivocadas sobre os fatos sob julgamento e desconsiderou importantes aspectos trazidos pela Oi aos autos.”
O caso ainda pode passar por embargos e corre ainda uma considerável chance de ser judicializado, apontam fontes no setor. O caso também poderia gerar efeitos em futuras análises sobre o caso de venda da Oi Móvel, ocorrida em março para a Tim, Vivo e Claro.
Recado aos grandes
No mercado jurídico, especialistas em direito concorrencial viram a decisão como um aviso para que as empresas que dominam setores pensem bem antes de aderir ao modelo. “A mensagem do Cade é: celebrar um consórcio para participar de licitação não é uma decisão trivial se você tem participação dominante ou grande participação de mercado”, resumiu Angelo Prata, sócio do Ana Frazão Advogados. “É preciso pensar quais medidas são possíveis e em que medidas esse consórcio pode gerar fechamento.”
O advogado ainda avalia que a decisão não desincentiva a formação de consórcios, mas muda os cálculos das empresas. Em certas situações específicas, ele argumenta, até faz sentido algumas grandes empresas entrarem em consórcio, “mas isso não é uma premissa inafastável.”
Para o economista e professor Ricardo Hammoud, o Cade tem uma postura histórica de leniência com a concentração econômica, e que exemplos clássicos do noticiário policial colocam em dúvida o uso do consórcio pelas empresas brasileiras.
“Na própria história da Lava Jato, empresas construtoras trabalhavam muito em consórcio, em algo combinado”, disse. “Economicamente, faria sentido apenas se as empresas não tivessem capacidade, por tamanho, recursos e conhecimento técnico, de trabalhar neste projeto, juntando outras — isso em um cenário perfeito. Quando isso objetiva a redução da competição, isso gera a perda de dinamismo econômico.”
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Ticiana Lima, do VMCA Advogados, considera o caso como uma mudança de ventos no tribunal — que veio mediante uma pesada multa às empresas. “Antes, ao entrar em consórcios, as empresas incorrem em dois riscos: um era entrar em cartel — coisa que o Cade disse não ser aqui. E outra era do próprio consórcio gerar condutas anticompetitivas”, argumentou a advogada. “Agora uma conduta de formação de consórcio que não é cartel mas que seja ilícito é a primeira vez.”
Para as empresas, a necessidade de demonstrar a necessidade do consórcio, por mais que não seja comum, pode até ocorrer. “É preciso que as empresas dominantes tenham de ter extrema cautela, documentar previamente e ter justificativas econômicas razoáveis para ingressar num consórcio”, diz Eric Hadmann, da HD Advogados. “Não é um problema, mas um ponto de atenção adicional às empresas a partir de agora.”
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