Como mercado livre de energia vai impactar escolhas dos brasileiros

O mercado livre é um ambiente em que os consumidores podem escolher seus próprios fornecedores de energia/Pixabay
O mercado livre é um ambiente em que os consumidores podem escolher seus próprios fornecedores de energia/Pixabay
Abertura vai trazer mudanças profundas na relação com prestadoras de serviço de energia elétrica no país.
Fecha de publicación: 04/08/2021

A chegada do mercado aberto de energia elétrica aos consumidores residenciais no Brasil deve causar uma mudança estrutural no setor, mas não garante a redução da conta de luz num primeiro momento, de acordo com especialistas. 

Criado em 1998, o mercado livre é um ambiente em que os consumidores podem escolher seus próprios fornecedores de energia. Atualmente, de acordo com a legislação vigente, pode ser utilizado por consumidores com demanda contratada a partir de 1.500 kW na condição de “consumidor livre”, enquanto usuários com demanda a partir de 500 kW podem atuar na categoria “consumidor especial”.

No primeiro caso, o consumidor pode comprar energia de qualquer fonte e se beneficiar dos baixos custos das grandes hidrelétricas. Já os consumidores especiais podem adquirir energia das chamadas fontes incentivadas, como eólica, solar ou usinas a biomassa. Cerca de 35% da energia usada no país é comercializada por meio do mercado livre. 

Nesse novo ambiente são esperados preços mais competitivos, gerando economia, além da flexibilidade na negociação - com prazos, volumes e fontes contratadas mais flexíveis e duas questões importantes: a previsibilidade de custos e a integração a uma cadeia de valor que tem responsabilidade socioambiental como diferencial.

"A abertura do mercado de energia até chegar aos consumidores finais é rica para todo o mercado, não só para os consumidores finais. É um caminho sem volta, porque vai privilegiar a competição, conferir liberdade de escolha aos consumidores e aos agentes. Vai gerar competição nas atividades de geração, comercialização, ajuda na formação de preços mais eficientes", afirma Tiago Lobão, sócio fundador do Lobão Cosenza, Figueiredo Cavalcante Advogados (LCFC) integrante do Conselho Deliberativo do IBDE - Instituto Brasileiro de Estudos do Direito da Energia e dos Comitês de Geração e Transmissão de Energia da ABDIB.

 

"Sem dúvida, isso deve gerar economia nas tarifas. Se puder comparar com o que existe hoje, é como se você fosse ao shopping e buscasse uma operadora de celular. Você escolhe o que te dá de benefício - uma tarifa menor. Então a abertura do mercado deve proporcionar essa mesma vitória para o consumidor", explica o advogado.

 

Para discutir a  abertura do mercado do setor elétrico, a Aneel lançou uma tomada de subsídios, que está  recebendo contribuições dos agentes do setor e da sociedade em geral sobre a abertura do ambiente de contratação livre (ACL). A medida faz parte de um estudo que prevê a abertura do mercado livre para consumidores com carga inferior a 500 kW por mês, incluindo o comercializador regulado de energia, e proposta de cronograma de abertura, que tem previsão de início em 1º de janeiro de 2024. As contribuições podem ser enviadas até o próximo 17 de agosto.

A abertura do mercado é um dos objetivos da modernização do setor elétrico e faz parte da discussão do Comitê de Implantação da Modernização do Setor Elétrico (CIM), definição que está na Portaria MME nº 465/2019. A norma estabelece a redução dos limites de demanda para a contratação de energia elétrica por parte dos consumidores com carga inferior a 0,5MW. Mas antes será realizado estudo a ser desenvolvido pela Aneel e pela CCEE. Essa análise vai ajudar a criar medidas regulatórias de abertura do mercado. O estudo deve incluir ainda o papel do comercializador regulado de energia e proposta de cronograma de abertura para 2024. As contribuições podem ser enviadas para o email da Aneel. 

Para os especialistas, considerando a migração para esse ambiente como uma ferramenta financeira, há inúmeras utilizações de importância para o consumidor, principalmente o de de pequeno porte. "Um exemplo é a negociação direta com as comercializadoras e geradoras, através de contratos de longo prazo que podem prever o preço da energia até o momento final acordado sem qualquer interferência de fatores externos que pressionam as tarifas, o que pode proporcionar uma economia de até 30% do valor final da conta”, explica Allan Fallet, sócio do LTSA Advogados.

Um outro atrativo desse mercado, segundo os especialistas, é a comercialização do montante excedente de energia. Hoje no setor de energia a geração normalmente é centralizada. Assim, as grandes usinas hidrelétricas, solares e eólicas, por exemplo, mandam energia através de uma linha de transmissão para o restante do país. Com o estabelecimento da chamada geração distribuída será possível gerar em locais próximos do consumo. É algo semelhante ao que acontece com a  geração de energia solar nas casas, com o excedente indo parar na rede. Pelo novo sistema, há essa possibilidade do consumidor passar a produzir também energia.

“Tendo em vista as repercussões de uma grave crise energética e a tendência de elevação das tarifas, estima-se que o ambiente de contratação livre (ACL) poderá representar cerca de 50% do consumo nacional até 2030”, avalia Fallet.

"Num futuro, com o mercado de energia aberto, esse consumidor vai passar a ser gestionador. Ele vai gerir a sua própria energia, o mercado pode dar um incentivo se ele gastar menos energia. Essa abertura do mercado vai proporcionar não só uma livre escolha, mas vai entender cada um no seu consumo específico: vai abrir o mercado de energia como é o mercado hoje de consumo de uma forma geral", diz Lobão


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"Para o mercado de energia elétrica é uma hecatombe, porque vai abrir mercado para os geradores, vai abrir o mercado de comercialização. Teremos uma mudança enorme na configuração dos agentes de mercado. Para os consumidores é uma mudança gigantesca. Mas, ao mesmo tempo, vai ter um impacto gigantesco sobre as distribuidoras porque elas vão perder mercado. As distribuidoras vão deixar de ser vendedoras de energia e vão ser gestoras de rede de distribuição. E aí quem vai vender energia é qualquer um que tenha autorização da Aneel", analisa Vitor Rhein Schirato, professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP.

O mercado hoje

Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), hoje no Brasil 65% do consumo de energia é de consumidores cativos das distribuidoras e apenas 35% livres. Em alta tensão, existem 14 mil consumidores livres e cerca de 170 mil consumidores cativos, que, dependendo das mudanças no regulamento, poderiam eventualmente ser livres. No segmento de baixa tensão, são 80 milhões de consumidores ainda não contemplados com opções para a livre contratação de fornecimento, segundo dados da agência.

Também está em estudo novas modalidades tarifárias, além do aprimoramento do mercado varejista e da gestão dos contratos das distribuidoras. A agência propõe projetos em quatro eixos: medição eletrônica, tarifas multipartes, estrutura flexível e modalidades horárias. “Queremos entender a dinâmica diferente entre tipos de consumidores e esses custos que também deverão ser diferentes”, diz Sandoval Feitosa, diretor da  Aneel.

Para o coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Clauber Leite, não é apenas uma questão de vontade dos consumidores. “Os avanços dependem do aumento da eficiência econômica do setor elétrico, da produtividade das empresas e da concorrência, entre outros aspectos”, afirma. 

Os efeitos da pandemia e da maior crise energética dos últimos 90 anos impulsionam a ampliação do ambiente de contratação livre, tendo em vista as medidas adotadas pelo Governo Federal que repassam diretamente os custos e encargos para o consumidor, elevando as tarifas e trazendo imprecisão financeira para os negócios.

“Pelo modo como funciona o mercado de livre energia, o consumidor pode se antecipar e realizar as negociações de forma mais segura, estruturada, com o fornecedor de sua preferência, período de consumo e, principalmente, previsibilidade do valor a ser pago”, afirma Allan Fallet. “O advento da crise energética e a sua correlação com o mercado livre de energia demonstra não apenas o atraso do Brasil perante outros países, como também a necessidade de se debater as medidas necessárias para a ampliação desse mercado para uma gama maior de consumidores”, avalia o advogado.

Na avaliação dos especialistas, se bem encaminhado, o processo realmente pode reduzir custos, além de favorecer a adaptação à evolução tecnológica em curso e possibilitar uma participação mais ativa dos consumidores na tomada de decisões sobre suas condições de uso de energia. 


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Para garantir essas vantagens, a ampliação da abertura do mercado precisa vir acompanhada da adoção de mecanismos que reduzam os riscos da contratação de energia elétrica, evitando principalmente que os consumidores residenciais sofram com danos decorrentes da assimetria de informações entre os diferentes agentes. Isso também depende da capacitação dos pequenos consumidores sobre o tema. “É preciso ter muito cuidado inclusive para não promover falsas esperanças em relação ao assunto, como reduções muito significativas das contas de luz, que dificilmente ocorrerão”, explica Clauber Leite. 

Os especialistas defendem ainda a promoção de competição no setor para estimular a redução dos custos e o favorecimento da oferta de novos serviços aos pequenos consumidores, como projetos de eficiência energética e participação da resposta da demanda na gestão do setor elétrico. “Considerando o setor como um todo, é preciso que haja uma divisão justa dos custos dos chamados contratos legados, já fechados pelas distribuidoras, e que se garanta a expansão do setor”, afirma Leite.

Mas apesar dos benefícios aparentes, a discussão da abertura, para as pessoas físicas, tem que ser feita com calma, transparência e dentro de um modelo econômico financeiro muito claro, de acordo com os especialistas. "O que a gente não pode repetir é o governo editar uma Medida Provisória e de hoje para amanhã mudar tudo. Tem que ser um negócio muito bem pensado. Não é um movimento rápido a ser feito. Na Europa, ele demorou seis anos. A diretiva europeia de preparação de abertura do mercado é de 1996, com efeitos em 1997. A de abertura do mercado é de 2003. Os países ainda demoraram dois anos ou dois anos e meio para implementar. É um negócio extremamente interessante, mas tem contratos em vigor de distribuição de energia elétrica que vão no sentido oposto. Então tem que ver como é que melhora o mercado e progride na concorrência, sem destruir contratos que estão assinados. Essa não é uma equação fácil", afirma Vitor Rhein Schirato.

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